Por: Affonso Nunes

Cacaso, um poeta da mais alta prateleira da canção popular

Um dos mais fecundos letristas da MPB, Cacaso (1944-1987) tem sua obra celebrada em coletânea | Foto: Reprodução

Quando se fala dos grandes letristas da MPB, é impossível não mencionar o nome de Antônio Carlos de Brito (1944-1987), o Cacaso. Integrante da chamada Geração Mimeógrafo, que redimensionou a poesia produzida no país, ele colocou versos em melodias de compositores renomados como Djavan, Edu Lobo, Paulinho da Viola, João Bosco, Guilherme Arantes, Sueli Costa e Tom Jobim, além de ter sido gravado por Elis Regina, Maria Bethânia, Milton Nascimento e Simone. Músicas que ele assinou, como "Lambada de Serpente", "Dentro de Mim Mora Um Anjo" e "Triste Baía da Guanabara" ocupam lugar de honra no cancioneiro nacional.

A poesia marginal foi um movimento literário que emergiu como reação à ditadura militar nos anos 1970. Propunha também uma resposta às estruturas tradicionais da poesia brasileira. Cacaso foi um dos idealizadores do grupo Nuvem Cigana, ao lado de outros importantes poetas como Chacal e Paulo Leminski. Os poetas marginais publicavam suas obras de forma independente, muitas vezes em pequenas tiragens ou em revistas alternativas, fugindo dos circuitos editoriais tradicionais. Exploravam temas cotidianos, urbanos e políticos, utilizando uma linguagem próxima à linguagem falada nas ruas. Em sua busca inquieta por novas expressões artísticas, Cacaso encontraria na música uma outra via adicional para exercer sua poética.

Os 80 anos da nascimento desse artsita singular, celebrados neste em 13 de janeiro de 2024, não poderiam passar em branco. Para comemorar a data, a Kuarup lançou a coletânea "Cacaso 80 Anos", projeto idealizado e produzido por Renato Vieira. Diversos intérpretes, a maioria deles amigos e parceiros de Cacaso, foram convidados a fazer releituras de canções que, juntas, formam um painel representativo da obra dele e mostram todas as facetas de sua poética: ao mesmo tempo em que Cacaso era amoroso, reflexivo e denso, ele podia ser debochado, bem-humorado e leve.

Cada faixa do disco é assinada pelo poeta com um melodista diferente - algo natural e democrático, já que Cacaso fez canções com mais de 20 parceiros. Carlinhos Vergueiro, Claudio Nucci, Edu Lobo, Eduardo Gudin, Filó Machado, Joyce Moreno, Rosa Emilia Dias, Toquinho e Zé Renato estão entre os intérpretes que generosamente participam do álbum, ao lado de Camilla Faustino, Luísa Lacerda (talentosas representantes da novíssima geração da MPB) e das presenças especialíssimas de Alaíde Costa, Leila Pinheiro e Ney Matogrosso.

 

Poesias primorosas em cada faixa

Ney Matogrosso | Foto: Divulgação

Idealizado e produzido por Renato Vieira, o álbum "Cacaso 80 Anos" foi gravado entre abril e dezembro de 2023 nos estúdios 185 Apodi (SP), Aga Studio (SP), Biscoito Fino (RJ), Doispor2 (SP), Parede e Meia (SP) e Tacacá (RJ). Abaixo, a história por trás cada um das 13 faixas selecionadas para o projeto.

Gente Séria (Letra inédita) (Joyce Moreno/Cacaso), por Joyce Moreno: Joyce grava pela primeira vez esta parceria com Cacaso, feita em 1976 ou 1977. O álbum abre com a letra original do poeta, que modificou alguns versos quando Emílio Santiago escolheu "Gente Séria" para o repertório do disco "Ensaios de Amor" (1982). Acompanhada por seu violão marcante e pelo tamborim e caxixi de Tutty Moreno, Joyce retoma a gênese da canção, um samba joãogilbertiano em que Cacaso mostra as qualidades, mazelas e contradições do Brasil.

Fonte da Vida (Zé Renato/Cacaso), por Zé Renato: A aproximação entre Zé Renato e Cacaso ocorreu no fim dos anos 1970, quando o Boca Livre, grupo do qual Zé faz parte, despontou. "Fonte da Vida" abriu e deu o título ao primeiro álbum solo de Zé, que fez uma releitura no formato voz e violão para "Cacaso 80 Anos".

Lambada de Serpente (Djavan/Cacaso), por Ney Matogrosso: Uma das canções mais conhecidas de Cacaso, "Lambada de Serpente" é a primeira parceria do poeta com Djavan. Ney Matogrosso, que grava Cacaso pela primeira vez, faz sua releitura da música com a propriedade e o sentimento que fazem dele um dos grandes cantores da música brasileira. Alexandre Vianna (piano, arranjo e direção musical), João Benjamin (baixo) e Kabé Pinheiro (bateria e percussão) são os músicos da faixa.

Francamente (Toquinho/Cacaso), por Toquinho e Camilla Faustino/: Toquinho e Cacaso fizeram juntos quatro canções. Francamente mostra o lado romântico dos dois - em uma entrevista nos anos 1980, Toquinho a definiu como uma música no estilo de Roberto Carlos. A singela releitura conta com as vozes de Toquinho, que toca o violão da faixa, e de Camilla Faustino, intérprete com quem ele vem trabalhando em shows e discos.

Perfume de Cebola (Filó Machado/Cacaso), por Filó Machado: Regravada por vários intérpretes no Brasil e no exterior, Perfume de Cebola tem a musicalidade exuberante de Filó Machado aliada à qualidade poética de Cacaso. Nesta releitura, Filó toca violão e mostra sua verve jazzística.

Dentro de Mim Mora Um Anjo (Sueli Costa/Cacaso), por Alaíde Costa: Célebre canção da parceria de Cacaso com Sueli Costa, Dentro de Mim Mora um Anjo ganha pela primeira vez a voz majestosa de Alaíde Costa, uma das principais intérpretes da compositora (da dupla, Alaíde já havia registrado "Cinema Antigo"). O piano de Alexandre Vianna acompanha a cantora.

Refém (Carlinhos Vergueiro/Cacaso), por Carlinhos Vergueiro: Esta é a única parceria de Carlinhos Vergueiro e Cacaso, lançada pelo cantor e compositor pela primeira vez no álbum "Passagem" (1981). Os fortes versos já existiam antes de Vergueiro fazer a melodia. Nesta releitura, ele toca violão de 6 cordas e o músico Luiz Maranhão, o violão de 7 cordas.

Alma (Eduardo Gudin/Cacaso), por Eduardo Gudin: No fim dos anos 1970, Eduardo Gudin - um dos principais compositores paulistanos da era dos festivais, conheceu Cacaso e juntos fizeram três músicas. Alma foi gravada pela primeira vez por Gudin no álbum "Fogo Calmo das Velas" (1981). Nesta gravação o próprio Eduardo Gudin é quem toca os violões.

As Coisas (Claudio Nucci/Cacaso), por Claudio Nucci: Ex-integrante do Boca Livre, Claudio Nucci estabeleceu uma parceria com Cacaso após entrar em carreira solo, especialmente no álbum Melhor de Três (1984). As Coisas foi lançada nesse disco e nesta regravação Cláudio toca os violões. A letra mostra como Cacaso gostava de brincar com aliterações e é um belo exemplo do bom-humor do poeta.

Triste Baía da Guanabara (Novelli/Cacaso), por Leila Pinheiro: Lançada por Djavan em 1980, Triste Baía da Guanabara é uma das canções mais conhecidas da parceria entre o músico Novelli e Cacaso. Uma grande intérprete como Leila Pinheiro dá a densidade exata à letra sofrida, acompanhada por seu próprio teclado.

O Dono do Lugar (Edu Lobo/Cacaso), por Edu Lobo e Luisa Lacerda: Edu Lobo é um dos principais parceiros de Cacaso e, nesta faixa, se une a Luisa Lacerda, cantora da nova geração que ele admira e que interpreta "O Dono do Lugar" em shows. Gravada por Edu no disco "Tempo Presente" (1980), a canção ganha uma bela releitura com Cristóvão Bastos (piano, arranjo e direção musical), Jorge Helder (baixo acústico) e Carlos Malta (flauta).

Árvore Mágica (Rosa Emilia Dias/Cacaso), por Rosa Emilia Dias: Esta é a única música de Cacaso 80 Anos que não foi gravada para o projeto: faz parte do álbum Madrigal (2018), de Rosa Emilia Dias, cantora brasileira radicada na Itália que foi parceira de vida e de música de Cacaso. Giovanni Buoro (violão e vocal), Roberto Rossi (percussão) e Paula Dias de Brito (vocal), filha de Cacaso e Rosa, participam da faixa.

Gente Séria (Joyce Moreno/Cacaso), por Joyce Moreno: Joyce Moreno também canta e fecha o álbum com "Gente Séria" com a letra que ficou conhecida na voz de Emilio Santiago, acompanhada por seu violão e pela percussão de Tutty Moreno.

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