Por: Gustavo Zeitel (Folhapress)

Partituras abertas

Nelson Freire era um colecionador de si mesmo e mantinha um vasto arquivo reunindo seus trabalhos | Foto: Divulgação

Gravações raras e inéditas de Nelson Freire, um dos maiores pianistas do século 20, estão sendo descobertas e publicadas agora pelo Instituto Piano Brasileiro. Os materiais ficaram espalhados em fitas de rolo, K7 e VHS e ocuparam diferentes acervos. Digitalizados em som e imagem, as gravações expõem facetas do artista antes desconhecidas pelos especialistas.

São centenas de horas de música, sendo disponibilizadas aos poucos no canal do instituto no Youtube. Entre as descobertas, se destacam as interpretações de "Petrushka", do russo Igor Stravinski - concebida em 1985 no Concertgebouw, de Amsterdã, na Holanda - e do "Concerto para Dois Pianos e Orquestra", do francês Francis Poulenc, em parceria com a pianista argentina Martha Argerich, numa apresentação dos anos 1990 na Place des Arts, em Montreal, no Canadá.

Na mesma década, Freire pareceu, em um vídeo, se entusiasmar pela música de vanguarda ao fazer uma primeira leitura de "Mobile", de Clodomiro Caspary. Nenhuma das peças está registrada na discografia do pianista, morto há três anos. Em seus discos, Freire se concentrou em registros de outros compositores, sobretudo Brahms, Villa-Lobos e Chopin.

"A pesquisa mostra que o repertório de Nelson era muito maior do que nós sabíamos pelas gravações", diz Alexandre Dias, o diretor do instituto. Sua investigação se iniciou quando o músico ainda era vivo. Os dois se conheceram duas décadas atrás e criaram uma relação de confiança.

Em consequência, Freire autorizou o pesquisador a vasculhar o seu acervo. De acordo com Dias, o pianista era um colecionador de si e guardava todas as gravações.

Por isso, ele pôde desvendar momentos íntimos de Freire em ação. Por exemplo, quando tocou para a sua professora mais querida, Nise Obino, que se tornou uma musa inspiradora. Ou algo até mais raro, como o pianista, aos 15 anos, em seu quarto em Viena, na Áustria, tomando lições de Bruno Seidlhofer, com quem tinha uma relação turbulenta.

Com o tempo, a pesquisa do instituto se expandiu para um segundo acervo, do técnico de som Frank Justo Acker. Assim, Dias conseguiu mais novidades, além de constatar o aumento do repertório. Ele identificou um perfil camerístico na música do pianista, nunca atestada pela crítica. Nesse sentido, são exemplares as gravações de Freire, com dois violoncelistas de primeira linha, o brasileiro Antonio Meneses e o letão Mischa Maisky.

Criado em 2015, por iniciativa de Dias, o Instituto Piano Brasileiro se dedica a resgatar e divulgar a obra de pianistas brasileiros, digitalizando acervos e os incluindo na internet. "Nelson tinha uma facilidade descomunal para apreender a música já na primeira leitura", afirma Dias. O próximo passo, ele afirma, é publicar uma gravação do "Concerto para piano nº 4", de Rachmaninoff.

 

Biografia do pianista revolta família e amigos

Biografia escrita pelo francês Olivier Bellamy expõe detalhes da intimidade de Freire e causa revolta | Foto: Divulgação

Por causa de uma maré de azar, Nelson Freire, um dos maiores pianistas do século 20, perdeu o desejo de viver. Medroso, ele já andava devagar, passinho a passinho. Nem assim evitou as duas quedas que o vitimariam. Primeiro, em 2019, quando tropeçou no calçadão da praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Dois anos depois, escorregou na borda da piscina de sua casa, no Joá.

Nos acidentes, fraturou o braço direito e a mão esquerda, nesta ordem. Mesmo recuperado, com cirurgia e fisioterapia, concluiu que jamais atingiria novamente a transcendência musical que caracterizava as suas interpretações. Caiu em depressão.

Os últimos dias de sua vida são retratados como uma temporada no inferno na primeira biografia dedicada ao músico, "Nelson Freire: O Segredo do Piano", escrita pelo jornalista francês Olivier Bellamy. O livro vem causando revolta no meio da música de concerto por expor detalhes da intimidade do artista e sugerir que a causa de sua morte, segundo a família uma concussão cerebral provocada por uma queda, foi suicídio.

"Nunca imaginei uma biografia desse jeito. É um monte de fofocas, o autor nem fala da arte dele", diz Gloria Guerra, amiga e empresária do pianista. "O autor parece não ter escrúpulos. Se esse senhor quis causar polêmica, conseguiu. Isso é imprensa marrom. Nelson ficaria deprimido", afirma Roberto Tibiriçá, maestro que o conhecia desde os 12 anos.

Especializado em música de concerto, Bellamy apresentou, por uma década, um programa na "Radio Classique", na França, e atualmente escreve para revistas especializadas. Foi um dos poucos que conseguiu entrevistar Freire, adquirindo certa aproximação com ele. Em vida, o músico negou o pedido do jornalista para a biografia. Para ele, a comunicação se articulava entre o som e o silêncio.

Ao piano, Freire era o anjo anunciador da "Melodia de Orfeu", o famoso bis retirado da ópera barroca do compositor alemão Gluck. Longe dele, o silêncio chamava a atenção para o seu semblante, igualmente angelical em razão das bochechas rosadas e dos longos cílios.

Não é exagero dizer que o público, até agora, não sabia quem era Nelson Freire, o homem. "É impossível escrever uma biografia sem entrar na intimidade do personagem", diz Bellamy.

Além das quedas, a biografia enumera outros motivos para a depressão do músico, entre eles o isolamento social imposto pela pandemia. Foi nesse contexto que, segundo o livro, Freire começou a dizer que desejava morrer ao marido, Miguel Rosário e ao assistente, João Bosco Padilha.

Melhor amiga de Freire, considerada uma das maiores pianistas de todos os tempos, a argentina Martha Argerich cancelou seus compromissos na Europa para passar alguns dias na casa do Joá. Ela perderia o amigo pouco tempo depois de ir embora. Na madrugada de 1º de novembro de 2021, Freire morreu.

Em seu livro, Bellamy, um católico fervoroso, recorre a alegorias religiosas para descrever o suposto momento do suicídio. Em seguida, porém, volta atrás na afirmação. "Como ele morreu? Só Deus sabe. Para nós, pobres mortais, somente os fatos têm valor de verdade."

Também ao falar à reportagem o autor se contradiz. "Não é preciso escrever a palavra 'suicídio', porque a gente compreende o que se passou lendo", afirma.

Outras passagens que incomodaram pessoas do círculo social do instrumentista se devem ao escrutínio que o biógrafo faz de sua vida íntima. O biógrafo afirma que a riqueza de detalhes se deve à estima depositada nele por pessoas próximas a Freire. "As pessoas confiaram em mim e não tiveram reservas quando deram seus depoimentos. Eu não as traí nem traí Nelson, mas compreendo que estejam chocados", diz. "Freire era um homem de musas."

É verdade que Freire deve a uma série de mulheres a formação de seu gênio musical. Era um devoto de Guiomar Novaes, de quem tomou muitas lições. Quando, ainda criança, se mudou com a família para Ipanema, passou a ter adoração por Nise Obino, a professora de piano.

Longe dela, ao ganhar uma bolsa para estudar em Viena, ficou triste. Odiou a rigidez do novo mentor, Bruno Seidlhofer. Mas foi na capital austríaca que conheceu, ainda adolescente, Argerich, sua musa definitiva. Por ironia, tinham personalidades bem distintas. O brasileiro era hipersensível, e a argentina, arisca.

No que se refere ao seu estilo, a melhor definição está no livro de Bellamy. Certa vez, diz o texto, o pianista russo Nikolai Luganski disse que Freire tocava como se sua mão não tivesse ossos, tamanha delicadeza e maciez com que seus dedos atacavam as teclas.

Foi dominando um repertório muito particular que Freire se apresentou nos principais palcos do mundo, ao lado da Filarmônica de Berlim, das sinfônicas de Viena e Londres e até com a Gewandhaus, da Alemanha.

Vivendo entre Paris e Rio, ele se tornou uma referência. Mas só foi reconhecido como uma estrela nos anos 2000, quando passou a gravar com a Decca. Do período, surgiram os discos "Brahms: The Piano Concertos", de 2005, e "Brasileiro: Villa-Lobos & Friends", de 2012.

Bellamy descreve os encontros no Joá e as visitas que fez a Freire na casinha do pianista na rue Chaillot, vizinha a um outro imóvel de Argerich, em Paris. Nessas ocasiões, ele conta, o músico ficava mais relaxado. Contava piadas e adorava assistir a filmes junto com os amigos.

Cristian Budu, considerado o sucessor do músico, também esteve com Freire na capital francesa no fim da vida. "Ele tinha um jeito muito mineiro. Por isso, me ensinou a buscar uma intimidade com a música", diz ele. "Só assim a melodia se transforma numa poesia sem palavras."

 

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