Por: Affonso Nunes

Morre compositor João Donato, aos 88

João Donato divide o palco com parceiros e amigos de várias gerações no show 'Donatural', que agora chega às plataformas | Foto: Divulgação

Pense no momento mais marcante da música brasileira no exterior e ele estava lá. Pense na ginga da fusão do jazz com os ritmos latinos e ele estava lá. Pense num compositor, pianista, acordeonista, arranjador e cantor de personalidade cativante, um fonte transbordante de alegria e ele estava lá. João Donato, de 88 anos, não resistiu a uma série de problemas de saúde enfrentados nos últimos anos e nos deixou, arrancando lágrimas de uma legião incontável de brasileiros.

A saúde debilitada e a idade avançada não lhe impediram de criar. No ano passado, lançou "Serotonina", seu primeiro álbum solo com canções inéditas em 20 anos. Tendo o piano como seu fiel companheiro de vida, o inventivo artista nascido no Acre plantou uma floresta musical, cheia de vigor e com a doce fluência dos rios amazônicos.

Mas o piano não foi seu único instrumento. Aprendeu a tocar acordeom na infância. Na década de 1940, mudou-se para para o Rio de Janeiro, onde foi um dos dos mais assíduos frequentadores do fã-vlune de Johnny Alf, uma reunião de jovens que viria a ser o laboratório de testes da Bossa Nova. Donato começou a despontar profissionalmente nas casas noturnas cariocas até se tornar um dos precursores daquele revolucionário movimento musical. Depois de ter alguns acordeons furtados depois dos shows, adotou o piano. "Tive um acordeom roubado de dentro de um carro, onde eu deixei o instrumento à noite. Com preguiça de levar pra casa, deixei ele dentro do carro do Nanai (do conjunto da Carmem Miranda) e o carro não fechava as portas, então, no dia seguinte, o acordeom não estava mais lá. Aí, não me restou outra saída senão trocar pelo piano. Então, eu vi que era até mais cômodo: eu não precisava de instrumento, o piano já estava nos lugares em que eu ia tocar", contou em 2018 em entrevista a este repórter com seu habitual bom humor numa adorável tarde de céu azul no Outeiro da Glória.

Uma de suas canções mais conhecidas deste período de início de Bossa Nova foi "Minha Saudade", uma parceria com João Gilberto, o amigo com dividiu um apartamento minúsculo em Copacabana antes da fama de ambos.

Seu talento como melodista rendeu parcerias célebres com Gilberto Gil ("A Paz" e "Lugar "Comum"), Caetano Veloso com ("Surpresa") e Chico Buarque ("Cadê Você"). Com sua simpatia e carisma, conquistou a amizade de nomes como Tom Jobim, Maria Bethânia e Gal Costa.

Nos anos 1960 viveu quase uma década nos Estados Unidos. Trabalhou com Nelson Riddle, Herbie Mann, Chet Baker, Cal Tjader, Bud Shank, Armando Peraza, entre outros nomes do jazz. Formou, ao lado de João Gilberto, Jobim, Moacir Santos, Eumir Deodato, Sergio Mendes e Astrud Gilberto, o time dos que tornaram o Brasil de fato reconhecido internacionalmente por sua música. E ainda aproximou-se da turma do jazz latino, o que marcaria definitivamente seu estilo. "A maior parte do tempo que passei lá foi praticando com esse tipo de música. Acho que é por isso que a música afrocubana tornou-se uma forte influência no meu jeito de compor, de tocar, de fazer arranjo", destacava.

Donato deixa para a posteridade e amantes da música em geral 38 álbuns, entre discos de estúdio, registros de apresentações ao vivo e coletâneas. Uma obra iniciada em 1956, antes do advento da Bossa Nova, com o álbum "Chá Dançante", lançado pela Odeon.

"Serotonina", último disco do artista, trouxe dez faixas, com dez temas escolhidos do acervo histórico do músico, estabelecendo novas parcerias com compositores como a cantora Céu e a forrozeira Anastácia, que participam do disco cantando com Donato.

Em 2021, gravou com Jards Macalé o álbum "Sintonia do Lance", uma obra-prima e que já chamava atenção pela capa na qual os dois artistas posavam nus por trás de um arbusto nos jardins da gravadora Rocinante, em Itaipava, Petrópolis. No mesmo ano, lançou "Jazz is Dead" com Com Adrian Younge e Ali Shaheed Muhammad.

Donato era relutante em cantar, o que só faria a partir do álbum "Quem é Quem" (1973), seu primeiro disco em que os temas musicais ganhavam letras. "O cantor Agostinho dos Santos veio reclamar comigo: 'Mas rapaz, você vai gravar outro disco instrumental? Se não botar letra, os cantores não cantam!'", contou Donato.

Ao falar sobre seu processo criativo na já citada entrevista, Donato exibia sua receita nada convencional. "Nestes mais de 70 anos que eu faço música, cheguei à conclusão de que compor é como se você estivesse fazendo um suco com várias frutas. Uma vitamina! É só misturar um dó com um ré; um bocado de cupuaçu com maracujá; ou abacaxi com caju e laranja, e você chega a resultados deliciosos. Os acordes são como frutas que você vai dosando, com umas gotas de baunilha aqui, uma pitada de canela ali, uma boa dose de açaí e você tem um refresco maravilhoso. Não posso dizer que me sento para compor uma música. É um pouco como beber um copo de água, você apenas bebe porque tem sede. Para mim, as músicas chegam naturalmente. em qualquer circunstância. Tem uma música muito apreciada, por exemplo, eu estava quieto à beira do Rio, lá no Acre, eu tinha uns sete anos e passou um barqueiro assobiando. Guardei esta célula de som e este sentimento comigo, uma certa melancolia. Anos mais tarde, continuei a melodia e chamei de 'Índio Perdido'. Veio o Gil, colocou uma letra e virou 'Lugar Comum'. Claro que, perto da natureza, tudo é melhor. Eu, que nasci no Acre, tenho nas águas dos rios, do mar, no canto dos pássaros, uma inspiração permanente. Garotas bonitas também são uma poderosa fonte de inspiração (risos)".

É, João, você vai fazer falta.