Combustível de renovação

Prestes a concorrer pelo troféu Redentor no Festival do Rio, Carolina Markowicz levou brasilidade a San Sebastián com seu longa 'Carvão'

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Carolina tira a representação do Brasil do lugar comum em festival

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

San Sebastián sentiu-se sem norte geográfico, em relação a suas certezas (e seus lugares comuns) acerca do Brasil, quando conferiu, em seu recém-encerrado festival anual, o longa-metragem "Carvão", da paulista Carolina Markowicz.

A sessão, nos Horizontes Latinos do evento espanhol, terminou em aplausos tão calientes como a fonte vegetal (por vezes, mineral) de aquecimento que lhe dá título, mas houve um certo tom de surpresa em relação a uma paisagem fria, com cobertas grossas, com pessoas encasacas. E a presença (marcante) de um imigrante argentino, vivido por César Bordón (o político grosseirão do episódio de "Relatos Selvagens" passado num restaurante), aumenta ainda mais o mistério da trama, ambientada no interior.

Uma trama dirigida pela cineasta laureada internacionalmente pelo curta "O Órfão" (Queer Palm em Cannes, em 2018), na qual Maeve Jinkings, dez anos depois de sua consagração em "O Som ao Redor", dá ao país sua atuação mais memorável. A atriz vive Irene, dona de uma carvoaria, ao lado de um marido de pouca força de vontade, Jairo (Rômulo Braga), que aceita hospedar um hermano em sua casa. Mas o sujeito, vivido por Bordón, tem um crime em seu currículo, o torna sua presença ali um perigo para todos, sobretudo para o filho pequeno de um casal nas raias do desapego.

De volta ao Brasil, depois de ter colhido elogios em San Sebastián e, antes, no Festival de Toronto, Carolina explica ao Correio da Manhã qual retrato da realidade brasileira construiu.

Que Brasil frio, de casaco e cobertor grosso, você retrata em "Carvão" e o quanto ele é simbólico das crises nacionais do tempo atual? Que conflitos financeiros e políticos de hoje te norteiam na criação do roteiro?

Carolina Markowicz: Um Brasil de espelho turvo, que não vê a própria loucura. Um Brasil imerso num absurdo generalizado e que se naturalizou a ele. Vivemos um momento em que se defende tortura. Em que se estimula o porte de armas como meio de redução da violência. São contradições que ultrapassam a fronteira do delírio. Meu foco principal de reflexão sempre foi esse jogo político em que vivemos, no qual as pautas são subvertidas em benefício próprio e a instituição "família tradicional" tornou-se um fim soberano pelo qual e para qual tudo é justificável.

O quanto a presença do (genial) ator de "Relatos Selvagens", César Bordón, ajuda a "internacionalizar" as vendas, por uma conexão com a Argentina? O que existe de coprodução no projeto?

Carolina Markowicz: "Carvão" é uma produção da Superfilmes, de Zita Carvalhosa, com BIônica Filmes, por meio de Karen Castanho, e tem, sim, uma coprodução argentina, a partir da Ajimolido Films, com Alejandro Israel. Convidei César para o filme desde que o projeto existe e tive a sorte de ele aceitar e colaborar desde sempre. Foi uma decisão artística, por isso, não posso afirmar que ajudaria as vendas internacionais pelo fato de ele ser argentino. Espero que sim, não por isso, mas pelo talento notório dele. César é, de fato, um ator e parceiro genial. Tive a oportunidade de trabalhar com ele em um dos meus curtas e seu talento e dedicação sempre me impressionaram. Queria que Miguel, o personagem, fosse um estrangeiro dentro daquela família de brasileiros que também, de certa maneira, são estrangeiros em suas próprias vidas. Nada é o que parece ali, e convenções sociais - que são ainda pressurizantes quando se vive no interior - fazem com que as pessoas cumpram papeis que não necessariamente correspondam à verdade delas. Um Argentino me pareceu a medida mais adequada entre o próximo e o distante. A língua às vezes é compreensível, às vezes menos. Um jogo estranho que poderia ser construído na evolução da convivência.

Em que geografia o filme foi rodado: que cidade(s) e em que época do ano?

Rodei em Joanópolis, interior de São Paulo. É uma pequena cidade perto de Bragança Paulista, onde eu cresci. A pequena parte Argentina que há no filme foi rodada em Puerto Iguazu. As filmagens começaram no dia 19 de julho de 2021. Foram quatro semanas no Brasil e cinco dias na Argentina.

Qual é a percepção da força feminina que Irene traduz e o quanto Maeve Jinkings ajuda nessa representação?

Irene é o fio condutor da história. Suas decisões norteiam absolutamente todos os acontecimentos, para o bem ou para o mal. Ela corresponde a uma peça da performance social da família tradicional, patriarcal, mas que, na realidade, é totalmente defendida por uma mulher. Bem ou mal, bom ou ruim, é Irene quem pauta. Maeve é uma força da natureza. Um azougue capaz de ser ao mesmo tempo brutal e doce. Capaz de defender um personagem tão controverso de tal maneira que gera conexão. E tentativa de compreensão. Era algo muito arriscado, mas Maeve é grande.

Já temos um novo filme seu à vista, "Pedágio". Do que fala? Pra quando?

Maeve também o protagoniza, junto com Kauan Alvarenga, o ator principal de "O Órfão". Fala de uma mãe, cobradora de pedágio, que não aceita a sexualidade do filho e acaba pensando em uma maneira ilícita de levantar dinheiro para pagar por uma "cura" ministrada por um pastor em visita à Cubatão. Deve estrear ano que vem.