Beatriz Rezende: 'A crítica saiu de moda, mas há que se pensá-la'
Quindim da crítica e do público em 2024, por seu resgate estrelar da persona de Demi Moore, "A Substância" não adoçou a boca de Beatriz Resende, que reduziu o thriller de Coralie Fargeat a "filme de monstrinho", numa troca de whatsapps com a reportagem. Percebe-se e respeita-se seu ponto, frente à curva gore do longa-metragem, com carnes se desfazendo na tela grande, conforme Demi vira purê de gente, mas é difícil fechar com ela nessa avaliação. A discordância é bem-vinda e não muda em nada o fato de ser uma delícia escutar as reflexões (mesmo as mais ferinas) dessa (hoje emérita) professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autoridade nacional nos estudos de Lima Barreto (1881-1922), ela vem refletindo, em seu trabalho acadêmico, sobre Hollywood, sobre exercícios de brasilidade (tipo "Regra 34", de Julia Murat) e sobre pepitas cinéfilas francófonas sempre sob um prisma de rastreio das novas vozes autorais femininas na direção. Ganhadora do Leão de Ouro de Veneza em 2021, em plena pandemia, a produção parisiense "O Acontecimento", de Audrey Diwan, é um dos títulos que não saem das análises feitas por essa carioca da Lagoa, ao lecionar na Faculdade de Letras, no Fundão. Literatura é seu chão, mas, seu olhar para as manhas da palavra se estabelece numa dinâmica de 360 graus, em flerte com as demais manifestações artísticas. O cinema, sobretudo. Cada filme que disseca, em sala de aula, vem misturado de referências teóricas e de analogia com um rol de autoras que vai de Virginia Wolf (1882-1941) a Clarice Lispector (1920-1977).
A fina flor do pensamento dessa educadora inspirou uma coletânea de ideias, chamada "Crítica Insubmissa", que acaba de chegar às livrarias, com direito a lançamento regado a bate-papo neste fim de semana. O livro saiu pela Mapa.Lab e teve em sua organização o empenho de Adriana Madeira e Lucas Bandeira. Neste sábado (13), essa dupla estará com Beatriz para sessão de autógrafos e uma conversar na Janela Livraria, ali na R. Maria Angélica, 171B, às 11h.
No papo a seguir, a professora bate em vazios teóricos da contemporaneidade.
De que maneira a crítica literária hoje, praticada a partir da academia, das universidades, vai além dos livros, dos versos, dos ensaios e se propõe a pensar um país e sua cultura para além da prosa e da poesia?
Beatriz Resende - O que me dá pena, ao avaliar o pequeno papel da crítica, é que hoje a gente vive um momento muito importante na literatura brasileira. Sobretudo, a literatura de mulheres. Ela é potente, é de qualidade, coloca as questões fundamentais, como a violência e a desigualdade, e precisaria, sim, de mais crítica para divulgar a qualidade desse trabalho. Não há espaço. A crítica saiu de moda, mas há que se pensá-la. Tenho pensado sobre o que a gente fala do desaparecimento da crítica literária, mas sob a vertente dessa questão da crítica como mediação de diferença, como divulgação de propostas diferentes (por vezes, opostas), que desapareceu. Agora, é porrada ou nada... Vou até mais nisso, tá? Há que se pensar a crítica de modo geral como uma impossibilidade.
Em que ponto da sua jornada, Lima Barreto virou um norte da sua reflexão e o que ele ainda oferece de mais desafiador ao teu olhar?
Lima Barreto me serviu para olhar ainda melhor para a desigualdade e para as questões de raça e gênero. Nas discussões identitárias de hoje, um romance que a mim encanta enormemente, que é o "Clara dos Anjos", vem sendo relido de maneira proveitosa. É um romance que bate fundo principalmente nas jovens mulheres negras, que passaram a dar à leitura do Lima um novo viés. Só agora no século XXI, estamos em condição de entender tudo o que era importante em Lima Barreto. É uma voz inaugural que só agora é devidamente compreendida e encontra a repercussão devida. Há novas edições críticas de sua obra e, felizmente, há novos leitores.
O que podemos esperar para os próximos meses da revista "Z Cultural", que você edita?
A "Z Cultural, ligada ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, é um caso raro de revista virtual de longa existência, com cerca de 17 anos de vida. Nesse tempo de existência, a "Z" foi crescendo e ficando cada vez mais importante, cada vez com mais visibilidade e, sobretudo, com grande circulação no meio acadêmico, entre professores, estudantes de pós-graduação e intelectuais que contribuem regularmente para a revista. A próxima sai no início do ano que vem e tem como tema: "Guerra e Paz: Conflitos do Cotidiano".
O que vem pela frente no seu ofício em sala de aula, na pós da Faculdade de Letras da UFRJ?
Vou seguir investigando o conceito de "escrever a mãe", que tenho discutido em cursos recentes, abordando o tema na experiência de três autores contemporâneos: Didier Eribon, Édouard Louis e Ocean Vuong.