Eu sou um monstro urbano. Eu sou um dos muitos monstros urbanos da sociedade, tratado com total indiferença. Ninguém vai reparar se eu cair morto na rua. Nós ficamos assim, hoje nós somos assim, uma sociedade liderada pelo desprezo. Tenho vivido a espiar as esquinas, as pessoas e a gente. Tenho visto o sofrimento, os olhos esbugalhados cheios de lágrimas pelos rostos aí afora, as pessoas com fome, outras pessoas sonhando com um mísero emprego e muita gente sem rumo, nem destino.
Pode ser na TV. Pode ser na grande avenida ou no corredor do shopping center? Pode ser no mercado popular ou no sofisticado, até na tela do cinema e ponto: lá está o sofrimento, lá está o trabalhador, as pessoas humilhadas, oprimidas, longe, muito longe do que gostariam de estar em algum momento.
Tenho visto o ir e vir, a correria, a luta louca para se manter o respeitável posto de trabalho e, consequentemente, dinheiro para comer. Tem os ônibus e trens cheios, as pessoas oprimidas. Com fones de ouvido para se esconder do mundo. Tem as mãos mendigas estendidas, cheias de rugas e sofrimento, esperando o fim de vida menos triste, mas nem tudo é só derrota. Às vezes há construções: quando é possível, a gente faz festa, tem Carnaval, tem show na praia e as pessoas fazem seu churrasco. No fim do ano vêm as festas e alguns se abraçam, outros fingem que são felizes, outros desejam o melhor para todo mundo. Somos muito individualistas, mas nessa hora a gente mostra algum serviço.
Existe a tristeza, mas também há fagulhas de alegria, também há bons momentos mesmo para aqueles que têm muita dificuldade em ter uma vida razoável, é o caso de dias recentes quando tivemos por aí um inevitável sentimento de Justiça, logo num país marcado por injustiça permanente. O bom da vida é a contradição. Prenderam pessoas que fizeram muito mal ao povo do país, humilharam, sabotaram riram e debocharam. Há quem diga que não existe lei do retorno, mas dessa vez ela retornou em cheio e se espatifou na cara de quem não tem coração.
Enquanto existe uma esperança de Justiça mínima, eu vou seguindo meu caminho pelas ruas, monstrinho urbano como tantos outros ignorados por aí. Ninguém repara em mim, ninguém pensa no que eu tô sentindo, nem se eu tenho sonhos. Ninguém quer saber se eu tenho família, esposa, filhos, se eu não tenho nada, se estou doente, nada, absolutamente nada. Eu ando pelas ruas e ninguém me dá bom dia, ninguém me olha. Talvez eu sequer exista, se pensarmos bem.
Tá tudo certo. A vida é assim, infelizmente nós constituímos as coisas desse jeito e acho que vai ser difícil de mudar, mas pelo menos hoje, só por hoje e só pelos últimos dias, voltei a acreditar que é possível ver um pouco de justiça na Terra e isso serve como combustível para as empreitadas que cada um de nós tem por aí.
Quer saber? Mesmo com tudo contra eu ainda sonho, eu ainda vejo a chance de alegria num garotinho com sua camisa tricolor rasgada, uma caixinha de doces e pulos de felicidade subindo a rampa daquele outro Maracanã. Ou outro garoto feliz perto da UERJ com sua pipa barata e o pequeno sonho de estar no ar. Eu sou um monstro urbano e todos me desprezam, mas dentro do meu peito bate um coração de valor, ao menos por enquanto.