CRÍTICA / LIVROS: Os deslocados
Uma mulher morre pela segunda vez, surpreendendo amigos e parentes com a descoberta de sua vida dupla, abrigando uma fugitiva da violência doméstica. Uma família de indígenas da etnia Cheyenne tenta manter a integridade cultural depois de perderem terras e verem seu povo quase aniquilado pelos europeus que se apossam da região. Um homem atravessa parte do país às vésperas da posse de um presidente da República. O crescimento de forças paramilitares no Rio de Janeiro encurrala o povo perante a marginalidade. Em ficção ou em textos analíticos, alguns títulos propõem reflexões quanto ao deslocamento de quem luta para se integrar numa sociedade hostil às diversidades.
"Querida Tia" (Intrínseca, R$ 68,90), da francesa Valerie Perrin, segue uma fórmula bem-sucedida da autora que aborda temas pungentes, quase sempre decorrentes de estigmas sociais. Agnes é informada da morte da tia Colette, cujo falecimento acontecera havia três anos. Colette passou-se por morta, sem sair à rua, depois de enterrar, em seu lugar, a amiga, que morava escondida em sua casa temendo o pai, um ex-artista circense, violentíssimo. As explicações para a primeira "morte" da tia e sua vida secreta estão em dezenas de fitas cassete que ela deixa para a sobrinha, ajudando Agnes, recém-divorciada, a se recuperar da separação e a reencontrar suas raízes, sepultando seu próprio não-pertencimento.
Em "Estrelas errantes" (Rocco, R$ 67,40), Tommy Orange volta à temática da inserção dos indígenas norte-americanos na contemporaneidade, abordando os programas de "reeducação" de crianças, levadas para escolas onde aprendiam valores europeus, incluindo a religiosidade cristã, e os massacres que reduziram as populações indígenas de 25 milhões de indivíduos para 2 milhões de pessoas. O genocídio indígena deixa marcas nos grupos da atualidade, que ainda sofrem preconceito racial e cultural, sem se integrar totalmente à sociedade branca, protestante e anglo-saxã. O romance foi finalista do Booker Prize 2024.
"Antiroad" (Sete Letras, R$ 54), de Álvaro Senra, é um livro 'pé na estrada' que observa os últimos dias de um país prestes a retroagir social-cultural e economicamente. O narrador se dirige a Curitiba para acompanhar a passagem do ano em frente à cela onde está encarcerado um ex-presidente da República, "Vamos sobreviver (...), quando tudo isso acabar estaremos vivos", ele repete a cada momento de desânimo diante da baixa expectativa de que o eleito faça um bom governo. O romance termina no segundo dia de 2019, com o narrador refletindo sobre um Brasil sem doenças mortais "em comparação com outros trópicos" e a "desigualdade, essa sim mortal".
Em "Como nasce um miliciano - A rede criminosa que cresceu dentro do Estado e domina o Brasil" (Bazar do Tempo, R$ 61), a jornalista Cecília Oliveira aborda a trajetória do ex-policial Carlos Eduardo Gomes, o Cabo Bené, que dominou politicamente a cidade fluminense de Itaguaí para ilustrar o crescimento grupo paramilitar na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. O fortalecimento dos milicianos, segundo a autora, se expande vertiginosamente entranhado no poder, participando de um Estado negligente em termos de segurança, obrigando a população a obedecer e sustentar uma estrutura que promete garantir o que o governo deixou de lado.