Jacques Martial: 'Supremacistas brancos estão fazendo suas vozes serem ouvidas'

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Fiel à tese de que um evento decolonizador deve se reger pelas águas, na diplomacia de Oxum, a Festa Literária das Periferias (Flup), em sua 14ª edição, avançou Atlântico adentro e trouxe da França um militante que faz das artes cênicas sua ferramenta de luta contra o racismo: o ator Jacques Martial. Na Europa, ele fez fama nos palcos e no audiovisual, atuando em séries de sucesso popular como "Navarro".

Neste sábado, às 17h, ele vai passar pela Lapa, para uma ação performática da Flup no Circo Voador, na qual dá voz ao mítico poema "Diário Do Retorno Ao País Natal", escrito pelo martinicano Aimé Césaire (1913-2008). Seus versos são considerados um monumento lírico da cultura da diáspora das Áfricas e ganham carga sinestética eletrizante no filtro da voz e da movimentação de Martial, que se identifica com a crise migratória cantado por Césaire. Na entrevista a seguir, ele explica ao Correio da Manhã os signos geopolíticos de sua interpretação.

Qual é o poder simbólico de Aimé Césaire para a literatura e para as narrativas diaspóricas, e qual é a sua relação com o texto dele que você apresentará no palco no Brasil?

Jaques Martial: Uma obra que é ao mesmo tempo política, histórica e sociológica, "Cahier D'Un Retour Au Pays Natal" é um dos maiores poemas do século XX e, mais amplamente, um dos maiores da história da literatura poética. Ele surgiu no final da Segunda Guerra Mundial, quando a Europa e o Ocidente dominavam o mundo, tendo colonizado quase todo o planeta. Até então, eles justificavam sua sanha predatória com base na desigualdade racial e na suposta superioridade da cultura e do povo ocidental branco sobre todas as culturas, sobre os povos não brancos. Na escala de valores que inventaram, os africanos e afrodescendentes, escravizados pela Europa por quase quatro séculos, ocupavam o degrau mais baixo. Ao se apoderar das ferramentas estéticas e intelectuais das culturas ocidentais e levá-las ao auge da excelência artística, Aimé Césaire mostrou como esse conceito de desigualdade racial poderia ser desconstruído. O poder de seu discurso, em sua denúncia do racismo e da injustiça que alimentaram a lógica colonial, abalou os próprios alicerces do colonialismo. Criou ferramentas intelectuais eficazes que permitiram que os afrodescendentes repensassem seu lugar no mundo. Hoje, o movimento Black Lives Matter é um lembrete cruel de que a luta pela igualdade e pelo respeito aos povos pretos e a todos os oprimidos ainda é muito relevante. Com a vigência desse movimento, acredito que reabrir o diário de Aimé Césaire ajudará a mobilizar cada um de nós para renovar e ampliar a luta contra as formas de racismo e discriminação, com o objetivo de vivermos todos juntos.

Qual é o espaço que a cultura francesa dá às representações das culturas das populações pretas radicadas ou nascidas na Europa?

Na França, com relação aos afrodescendentes e suas culturas, é importante distinguir entre aqueles de países africanos anteriormente colonizados e aqueles oriundos de Guadalupe, Martinica, Guiana Francesa, Ilha da Reunião e Ilhas do Pacífico, os territórios ultramarinos franceses. Com relação à África, um diálogo renovado com os países de língua francesa, em particular, está em andamento há algum tempo. Ele tem o objetivo de normalizar e fortalecer os laços diplomáticos e econômicos e as relações entre a França e suas antigas colônias. Nesse sentido, o mundo artístico tem desempenhado um papel de mediador no reconhecimento das culturas e dos artistas desses países, com o objetivo de transformar a percepção francesa sobre eles, após mais de um século de propaganda colonialista.

Qual é o papel específico do teatro nessa luta decolonial?

No que diz respeito ao mundo do teatro, na França, ser negro, há muito tempo, significa ser de origem africana. Com a normalização das relações entre os países da África e a França, a partir da década de 1970, os artistas de origem africana conseguiram encontrar papéis em produções teatrais com relativa rapidez. Simbolicamente, o trabalho do famoso diretor britânico Peter Brook, baseado no Teatro Bouffes du Nord, em Paris, desempenhou um papel importante na promoção desses artistas. Com relação aos atores dos departamentos franceses ultramarinos, as coisas foram muito mais complicadas. Devido à sua rejeição ou, pelo menos, à sua desconfiança em relação ao conceito de "comunidades", ao qual se opõe uma tradição universalista centralizadora (ou seja, parisiense), a França há muito tempo nega às regiões ultramarinas - às suas culturas e às pessoas que vieram delas - qualquer interesse que não seja regional. Para os atores afrodescendentes dessas regiões, que são "típicos" demais para se enquadrarem nas normas estéticas ocidentais "normais", ou que não são "africanos" o suficiente para encarnar a verdadeira ou "boa" alteridade, há muito tempo é difícil encontrar um lugar ou fazer seu nome no mundo do teatro clássico. Nos últimos anos, entretanto, a escrita contemporânea e as novas gerações de diretores começaram a mudar essa situação. Hoje, cada vez mais artistas, diretores e autores estão se expressando e fazendo com que suas vozes e talentos singulares sejam ouvidos nos palcos franceses. Mas ainda temos que provar que esse movimento é irreversível.

Como está esse conflito hoje?

No atual contexto político na França e na Europa, a extrema direita está cada vez mais presente e, como nos Estados Unidos, os supremacistas brancos estão fazendo suas vozes serem ouvidas, tentando impor suas visões não egalitárias ou hegemônicas do mundo. Por isso, há todos os motivos para temer que o conceito de "vivre ensemble", de viver juntos, seja minado como um modelo a ser buscado. Portanto, é urgente relembrar as linhas de Aimé Césaire em seu "Cahier d'Un Retour Au Pays Natal": "O mapa da primavera está sempre sendo refeito [...] Agora é a hora de cingir minhas carnes como um homem valente".