Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Luiz Carlos Lacerda: 'Todo ser é poeta, é só se permitir o salto sem nenhuma rede de segurança'

Luiz Carlos Lacerda, o Bigode | Foto: Alisson Prodlik/Divulgação

Duas novas coletâneas de poemas envernizadas numa grife cinematográfica consagrada desde os anos 1970 renovam o repertório literário do realizador Luiz Carlos Lacerda, o Bigode: "Amorosa Ciência" e "Labirinto Febril". Os dois serão lançados nesta segunda-feira, no Estação NET Rio, às 19h. Cada uma das obras aborda uma fase distinta de seu autor, abrangendo sentimentos esculpidos à luz de sua cinefilia e de seu agigantado cabedal de leitura. Lampejos de Lúcio Cardoso (1912-1968) - um amor de ontem, ídolo de sempre e objeto de múltiplos filmes - iluminam sua escrita. Outros faróis o guiam também. Na entrevista a seguir ele revela quais e adianta detalhes sobre o filme que prepara sobre o cineasta e produtor Carlos Vinícius Borges.

De que maneira o reencontro com toda a sua história como poeta, para a feitura desses seus novos livros, trouxe velhas buscas e antigos sentimentos de volta à vida?

Luiz Carlos Lacerda, o Bigode: Cada livro provoca um sentimento diferente pela própria natureza, temática e momento de vida. "Amorosa Ciência" é uma organização de poemas da minha juventude, entre os anos 1960 e 70, perdidos no furacão da vida e do Desbunde que vivíamos, pulando de um endereço para outro, entre Paraty, Ipanema, Londres, Arembepe, Salvador etc. Eles talvez contenham uma linguagem mais experimental e onírica, comme il faut. E o sentimento que me vem é uma espécie de permissão para reviver, reverenciar e comemorar o exercício de uma Liberdade exercida no seu mais profundo mergulho, apesar da repressão da ditadura e de uma Sociedade que ainda não se curou daquilo que o homem tem de pior. Esses poemas foram encontrados recentemente na Feira de Antiguidades da Praça XV pelo pintor Ronaldo Miranda. Já o "Labirinto" tem poemas escritos durante a pandemia, onde perdi muitos amigos - aos quais o livro é dedicado - numa quarentena de oito meses. São poemas marcados pela imensa tristeza, medo e desespero.

Que emoções ali retratadas nascem da prosa de Lúcio Cardoso, que foi um amor e uma de suas maiores influências?

A capa do romancista Lucio Cardoso retrata a paisagem claustrofóbica desse encarceramento. Lidos hoje, passados o furacão da Peste e o furacão político (um ligado e responsável pelo outro), vejo que apesar disso, dessa tristeza, nele avistamos alguns sinais de Esperança. Sabe-se lá como. Minha geração tem expertise de lidar com esses tsunamis. Lucio está (além das capas) sempre presente na minha vida de artista, vívido especialmente nessa atmosfera do "Labirinto febril". Labirinto que enclausura. Febre de viver.

O que Cacá Diegues e Rosemberg Cariry, que escrevem no livro, pontuam de mais singular na sua obra poética?

Rosemberg é um intelectual dos mais eruditos que há entre os cineastas brasileiros. Sua vasta cultura, presente nos seus belos e antológicos filmes, é capaz de dissecar uma poesia, buscar com seu bisturi de sensibilidade e de múltiplas influências belezas de que nem eu próprio tinha consciência - como os surrealistas faziam, por exemplo. Foi movido por essa intenção, de entregar a arqueologia de minha escrita para ser desvendada, que pedi seu texto de apresentação. É um texto que leio e releio incessantemente, numa fruição de sua análise poética e reveladora, como tudo o que esse grande artista realiza. Cacá é um farol da cultura brasileira que me presenteou com esse facho de luz generoso sobre minha poesia. De dentro dela ele extrai, para meu espanto, a pérola que possa conter o seu interior. Rabisca de signos que encontra, no meu texto, um mapa que me surpreende e me remete responsabilidades assustadoras. Será que é tudo isso a minha poesia? É um privilégio ser contemporâneo deles! Em tempos de novas patrulhas e de discursos supostamente libertários, esconderijo de inconfessáveis preconceitos (como o etarismo), é com orgulho que me alinho a eles. Eu o faço sem a mesma competência e talento. Como escreveu Fernanda Montenegro, em outro contexto, mas bastante oportuno: "Quero estar ao lado das bruxas quando acenderem a fogueira!".

Em que ordem poesia e cinema se posicionam em sua jornada criativa? Onde e quando começa cada um e como eles se posicionam na sua obra?

Minha Poesia e o meu Cinema são indissolúveis e inseparáveis. Como no poema de Murilo Mendes, o "Formas Alternadas". Ele diz: "Não sei onde a mãe acaba/ e onde a filha começa". Sou filho de um pioneiro, João Tinoco de Freitas. Ele foi o produtor de "A Mulher de Longe", de Lucio Cardoso; de "Comício com Prestes"; e "Rio 40 graus", do Nelson Pereira do Santos. Lembro de eles se reunirem aos domingos em nossas casas. Lá estavam os cineastas que viriam a ser os diretores do moderno cinema brasileiro - como indica a placa no prédio onde morávamos, em Copacabana. Já a poesia... essa era mais presente na minha vida de adolescente. Meu bisavô e meu avô paterno eram poetas, portugueses nascidos no século XIX. Meu pai e minha mãe me inocularam o hábito da leitura, mas era sempre prosa. Ela me deu os livros de Thomas Mann. Depois veio o Monteiro Lobato da Infância e o "Encontro Marcado", do Fernando Sabino, na adolescência. Na sequência vieram os livros de Jorge Amado, do Graciliano, de Zé Lins do Rêgo, e Lucio Cardoso, que era seu amigo. A poesia viria pelas mãos do meu avô paterno, quado eu era ainda menino, presenteando-me com o livro do simbolista português Antonio Nobre. Depois viriam o poeta Cláudio Murilo Leal - meu professor, que me revelou os modernistas brasileiros e os simbolistas franceses - e Walmir Ayala, que está focado nos poetas do Brasil. Eles dois, além de me incentivarem a escrever, publicaram meus poemas em antologias que organizavam, apresentando-os com enorme generosidade. O cinema veio depois, aos 19 anos. Tenho muitos títulos dedicados a escritores e meus filmes, muitos deles, obedecem a esse Cinema de Poesia sugerido por Pasolini.

O que um poeta brasileiro deveria ler na formação de si e na formação de sua obra?

Sempre repito o que declarou Lúcio Cardoso numa entrevista: "O único que aconselho é não aceitar o conselho de ninguém". Cada um descobre seu caminho, suas predileções e escolhas. Talvez o segredo seja experimentar, pesquisar. Hoje a Internet facilita o acesso. Eu tive a sorte de ter essas pessoas por perto. Meus pais; meu professor. Mas precisei correr atrás de leitura no Real Gabinete Português de Leitura, onde matava as aulas no ginásio, e na Biblioteca Nacional.

Que angústias e que levezas formam os versos de seus novos poemas?

Não há leveza nos meus poemas. Há um estado de transe, uma paixão que determina e escolhe cada palavra, cada verso. Nos poemas da juventude, muitas vezes prevalece somente o compromisso com a musicalidade e com a trágica sonoridade das palavras. Não é para fantasiar seu conteúdo, mas para deixar apenas pistas, reticências que o leitor vai costurando na compreensão daquilo que a sua sensibilidade é capaz de tecer. Como um tecelão que se deixa levar por sua sensibilidade poética. Todo ser é poeta, é só se permitir o salto sem nenhuma rede de segurança. Nos poemas atuais, menos pretensiosos, há um desejo da maior comunicação. Como se a consciência de que meu tempo vai se esgotando quisesse dizer alguma coisa. Não confunda com a ideia de "mensagem", pois isso não deve ser tarefa de poetas. Poesia é um grito à beira do vulcão em erupção.

Que filmes estão vindo por aí?

Acabo de lançar no Festival do Rio, "Celebrazione", uma homenagem à Pasolini, sobre o texto em que ele conta sua passagem pelo Rio em 1970. Preparo agora o documentário sobre Cavi Borges, um campeão de jiujitsu que se tornou, por acaso, o maior produtor de cinema independente do Brasil. Ele transformou o cinema em paixão obsessiva.

 

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