Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

ìtalo Moriconi: 'As redes afetaram sobretudo quem circula na literatura'

Ítalo Moriconi | Foto: Divulgação

Organizador de antologias controversas e (por isso mesmo) essenciais, tipo "Os Cem Melhores Contos do Século" e "A Poesia Brasileira do Século XX", Ítalo Moriconi jura que está na muda. Anda em processo de desmame de uma carreira exemplar como educador, na qual treinou o olhar de legiões para entender o esporro existencialista e político entre as vírgulas da escrita. Seu "Literatura, Meu Fetiche" é a ruminação saborosa sobre o ato de ler como forma de resistência, como um "modo avião", capaz de desligar o espírito humano do entorpecimento digital. Nesta terça, seu saber pantagruélico, temperado com o sal da ironia, abre as alas da programação 2024 do Instituto Estação das Letras (IEL), bunker carioca da criação e da reflexão literária. O encontro com o mestre será online, a partir das 18h, via Zoom, com inscrições abertas no sympla.com.br/iel. O impacto das políticas identitárias na prática de contistas, de romancistas, de cronistas e de poetas é o foco de sua fala sobre diversidade(s). A profusão de novas vozes decoloniais, antirracistas, indígenas e queers repagina prateleiras das livrarias e universidades, dois espaços nos quais Moriconi é celebridade. Na conversa (ou melhor, na aula) a seguir, ele esmaga chavões e prospecta caminhos para os verbos "ser", "estar" e "ler".

De que maneira a diversidade de vozes e de pautas que se faz notar hoje na prosa e na poesia brasileira se reflete na crítica literária? De que forma o "pensar artístico" entra em sintonia com o que é pensado?

Ítalo Moriconi: Acredito que as transformações que estão ocorrendo na prática, na literatura, nos textos propriamente ditos, estão sendo detectadas. Surge com elas uma nova crítica, muitas vezes não na imprensa, mas, em blogs. Pelas redes vai se desenvolvendo uma crítica ligada a essa nova literatura. Se você for olhar a produção universitária em Letras hoje, já nos exames de ingresso para mestrado e doutorado, ela está praticamente voltada para as questões identitárias, ou seja, para o contemporâneo. É muito forte essa presença. Há uma guinada nos estudos literários acontecendo, embora os temas clássicos continuem fortes. Por tema clássico, entenda tanto os temas clássicos da literatura em geral, quanto também o Modernismo, o século XX e a chamada geração marginal, que são temas "mais antigos".

De que forma(s) esse recorte identitário libertou a literatura? De que forma ele gerou novos paradigmas nas raias do clichê?

Eu não sei se o recorte identitário libertou a literatura, mas suponho que ele seja uma transformação no cenário literário. Ele é uma ampliação da literatura. Como está ligada a processos sociais, até mesmo revolucionários, essa luta identitária é uma dimensão política muito forte. Então, o que vemos é um momento de politização da literatura, como já tinha acontecido, por exemplo, nos anos 30 e 40 do século passado, quando a literatura era, de um lado, católica, de direita; e, de outro, era social, era socialmente orientada, com Graciliano Ramos, com Drummond. Havia polarização. Hoje a gente tem uma polarização social, e a literatura identitária está muito ligada a isso. Aí vão surgir os clichês e o processo natural de decantação vai acontecer aos poucos. Alguns escritores permanecerão, dependendo das suas futuras obras, ou ficarão ligadas a esse momento histórico que nós estamos vivendo. Agora, existe também, e muito, o perfil do escritor ou da escritora que parte para outra: faz filme, trabalha em outras esferas midiáticas, com imagem, visualidade. Essas coisas, elas estão interligadas, elas também explicam um pouco sobre a decantação. Assim, vai havendo uma progressiva consagração de alguns escritores tidos como os melhores, são lidos, relidos, vão de uma geração para outra. Agora, os que ficam pelo caminho, muitas vezes, estão ficando pelo caminho não porque tenham abandonado a criação artística, mas porque foram para o audiovisual ou para outras formas de expressão.

De que forma os excessos digitais (toda a cultura midiática das redes) impactaram na literatura? Como a prosa hoje foi besuntada pelos códigos da web, na forma e no conteúdo? Na medida oposta... de que forma a leitura hoje serve de respiro para toda a dependência eletrônica em que vivemos?

Acho que a disseminação das redes - da mídia, da comunicação virtual, de todo esse universo - afetou muito realmente tudo que pode significar escrita e leitura na nossa sociedade. Portanto, afetou a criação literária que era apoiada num sistema cultural bem diferente, menos proliferante e muito focada na chamada leitura alfabética. Você vai ver respostas em matéria de texto com pretensão literária. Você vai ter respostas que adaptam a linguagem. Existem alguns pontos das linguagens das mídias que se mantêm dentro de um conto ou de um romance. As redes afetaram sobretudo a maneira como a literatura circula e quem circula na literatura. Agora, a literatura, no sentido clássico da palavra, é, sim, um respiro, porque eu acho que ler é uma atividade. Existem vários tipos de leitura. Tem leitura oral... tem leitura militante... mas a leitura literária mais profunda, que é a leitura silenciosa, é um momento em que você se afasta de tudo e fica ligado no texto. Então ela é um respiro. Ela sempre foi um respiro. Hoje, manter o hábito da leitura pode até ser uma prática saudável, mesmo, para escapar dessa coisa vertiginosa que é a comunicação diária, em que a gente vive afogado, dependente dela, viciado nela.

Como anda a sua produção hoje, seja na organização de antologias ou na produção de conteúdo seu? O que esperar da sua prosa ensaística para o futuro?

Estou num momento de mudança de plumagem. Eu me aposentei totalmente da universidade, mas ainda tenho uma bolsa de pesquisa e quero fazer algum trabalho com Caio Fernando Abreu, a partir de um arquivo dele que está lá no Sul. É um projeto que eu vou encaminhar na universidade. Vou voltar à atividade em abril e tenho esboços de projetos de escrita na cabeça. A escrita ensaística vai depender muito da revisão que estou fazendo de todos os meus papéis para ver se sai um livro com algumas coisas já publicadas. Talvez eu queira acrescentar algo novo, mas aí levará algum tempo. Eu estou pensando em, durante esse ano, lançar um livro de poesia. Em matéria de ensaio e prosa, eu não sei. Talvez apareça algo mais para o final do ano ou no próximo ano só. Estou num momento de reflexão, de descanso e de mudança de registro. É a mudança daquele registro profissional do professor para um registro mais livre, vagando entre os livros e as bibliotecas, vagando entre as palavras e as autoras e os autores.

 

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