Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Um Tarantino pra estante

| Foto: Divulgação

A data já está marcada: no dia 4 de dezembro, Quentin Jerome Tarantino vai tomar de assalto livrarias de todo o país com o lançamento, via Intrínseca, de "Especulações Cinematográficas". É um ensaio histórico do diretor de "Django Livre" (Oscar de Melhor Roteiro Original de 2013) analisando filmes norte-americanos da década de 1970, incluindo joias pouco citadas como "A Outra Face da Violência" (1977), de John Flynn, um de seus xodós. Traduzido por André Czarnobai, esta cartografia afetiva em forma de literatura documental estabelece os pilares da formação do realizador, que completou 60 anos em março e ministrou uma aula magna na Quinzena de Cineastas de Cannes, em maio.

Quando concorreu à Palma de Ouro com o por vezes esquecido "À Prova de Morte" (2007), um dos segmentos do projeto "Grindhouse" (exibido em dobradinha com "Planeta Terror", de Robert Rodriguez), Tarantino foi visitar a Quinzena de Cineastas de Cannes. A ideia dele era acompanhar a projeção da cópia restaurada do outrora maldito "Parceiros na Noite" (1980), de William Friedkin. Ria de se acabar na poltrona, ao ver a versão estereotipada que o longa-metragem (com fama de maldito) trazia da cartilha dos longas de psicopata. Foi em Cannes que ele fez sua fama, em 1994, ao abocanhar a Palma com "Pulp Fiction - Tempo de Violência". Concorreu novamente com "Bastardos Inglórios", em 2009, comemorando a láurea de Melhor Ator, dada a Christoph Waltz, e voltou ao páreo em 2019, com "Era Uma Vez... em Hollywood". Antes, em 2004, ele exibiu "Kill Bill: Volume II" lá, em meio a seus compromissos como presidente do júri.

Neste momento, ele prepara seu novo longa, "The Movie Critic", inspirado pela brilhante obra ensaística das resenhas de Pauline Kael (1919-2001), com Paul Walter House. Mas não há nada dele a se encontrar nas páginas de "Especulações Cinematográficas". Nele, a cabeça pulsante por trás de "Cães de Aluguel" (1992) só fala do passado.

Por um soldo de US$ 200 semanais, Tarantino passou o ano de 1985 batendo ponto na Video Archives, uma locadora de Manhattan Beach, Califórnia, onde fez amigos, reais e imaginários, devorando o acervo local, sobretudo o faroeste "Rio Bravo" (aqui "Onde começa o Inferno"), de 1959. É do VHS que vem a depuração de sua cultura cinematográfica, reforçada com o DVD, que chega ao convívio dos cinéfilos num momento em que ele já é um diretor de respeito, com "Jackie Brown" (1997) no currículo.

Mas o universo das fitas rebobinadas do Video Home System foi essencial para ele. A partir do início da década de 1980 quando a tecnologia informática permitiu o advento dos retângulos analógicos do VHS, toda a memória fílmica produzida no mundo, até aquele momento, encontrou um escoamento (e um veio de preservação) biblioteconômico, que nos permitiu acesso a cópias, por exemplo, de uma comédia de Harold Lloyd (1893-1971) feita em 1919.

O VHS alfabetizou uma linhagem de cinéfilos e reeducou o olhar dos mais velhos, criando, em ambos, uma percepção de que a realidade - do presente e do passado, sobretudo - é mediatizada: existe o passado real, concreto, e existe o passado que o cinema nos ensinou. Nossa ideia da Chicago dos gângsters não é a Chicago dos documentos, calcada em fatos: nossa Chicago é a de Brian De Palma em "Os Intocáveis". Ou seja… verdade dá lugar a simulacros. E simulacros produzem simulações da vida, uma meta-vida, onde imagem não é só um corredor que nos leva a experiências sensíveis: imagem é a experiência em si.

 

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