Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Eduardo Souza Lima: 'Só teremos algum futuro se o patriarcado ruir'

Souza Lima: 'Ainda não aprendemos a lidar com uma dádiva maravilhosa que é o sexo' | Foto: Acervo Pessoal

Realizador de curtas como "Bola Para Seu Danau" (2015) e codiretor do longa-metragem "Rio de Jano" (feito a seis mãos com Anna Azevedo e Renata Baldi), Eduardo Souza Lima, carioca de Realengo, foi uma grife na crítica cinematográfica entre dos anos 1990 até 2006. Nessa época de ebulição e texto leve, salpicava suas resenhas de filme de provocação política e de ironia fina, no domínio pleno das locuções prepositivas.

Reminiscências de "Memórias Íntimas e Confissões de Um Pecador Justificado", tratado literário de James Hogg (1770-1835), e vários alumbramentos trazidos pelas HQs da Sociedade da Justiça e do Arqueiro Verde imbuíam seu texto feroz de alegorias anarquistas e de um cinismo pop rascante.

Sob a alcunha de Zé José, sua identidade secreta, o Oliver Queen do subúrbio formou cabeças (como subeditor do Segundo Caderno de O Globo) e desafiou entraves da política cultural no país, sempre celebrando o viço do cinema brasileiro. Nelson Pereira dos Santos era seu patuá (vide "O Amuleto de Ogum") e Eduardo Coutinho era sua bússola estética.

Nesse percurso, sempre de pé no chão, foi esmerilhando sua relação com o vernáculo e sua intimidade com a prosa, avesso a aburguesamentos, atento às contradições sociais do país, numa jornada reflexiva que culminou num romance com tintas de dramaturgia absurda: "Martina no Vale do Germânio". O livro está em pré-venda pelo site Cousa. Dá pra comprar pela URL: https://www.editoracousa.com.br/produtos/martina-no-vale-do-germanio/.

Com um pé na ficção científica (à moda "Metrópolis"), esse "1984" com molho de Carlos Zéfiro mistura quereres e angústias. Sua medula é de história de amor, amor carnal, passada no mundo virtual. Nela, Moisés, um gênio da programação, vive à espera de que o relógio bata 15h06 em ponto para se encontrar com sua amada amante, Martina, em algum ambiente digital do ciberespaço. Essas escapadas da realidade só podem durar uma hora, que é usada exclusivamente para o sexo. Um dia, ela desaparece e ele, que guarda um segredo de seu passado, tem que se arriscar a ser descoberto pelo Lebréu, o programa de buscas definitivo que criou, capaz de descobrir o paradeiro de qualquer um, mesmo que esteja desconectado.

Na entrevista a seguir, Zé José passa em revista o modo de se pensar matrizes e Matrixes.

De que modo a figura de Martina é uma analogia da mulher-robô de Metrópolis na tua narrativa? Que expressionismo e que alarmismo cabem na tua ficção?

Eduardo Souza Lima: É difícil fazer essa comparação sem entregar a história. Posso dizer que tanto Maschinenmensch quanto Martina são tentativas de voltar ao passado para modificar o presente e representações não da fortaleza feminina, mas da fraqueza masculina, uma patética tentativa de dominação. Somos covardes. Embora o meu livro não seja propriamente passado nos dias de hoje, ele é dirigido ao público atual. Não é coincidência que ambas as histórias se passem nas décadas de 20 de seus respectivos séculos. São tempos histéricos, não sabemos o que fazer com a liberdade que conquistamos a duras penas, ainda não aprendemos a lidar com uma dádiva maravilhosa que é o sexo: ou é sub ou é superestimado. E o que aconteceu no século XX está se repetindo como tragédia no XXI. Só o exagero dá conta de representar este mundo. Para mim, tanto "Metrópolis" como "Martina no Vale do Germânio" apontam para a mesma direção: só teremos algum futuro se o patriarcado ruir.

De que maneira o quadrinista Carl Barks, mito das HQs Disney responsável pelas aventuras do Pato Donald, moldou a sua forma de escrever? Como ele se faz presente nessa imersão na prosa?

Carl Barks é, disparado, minha maior influência. Dedico o livro a outros dois Carlos, Sagan e Marx, mas eu já era fascinado pelo espaço quando vi "Cosmos", pois sou filho da Corrida Espacial, e já era comunista muito antes de conhecer "O Capital". Para mim, são duas coisas naturais, inerentes ao ser humano. Já Barks me apresentou a Homero, à mitologia grega, às ciências, às civilizações pré-colombianas, à História. Por causa dele li a "Odisseia" e a "Ilíada". Sua narrativa é inigualável, uma mistura engenhosa de aventura, suspense e humor. Humor, para mim, é fundamental, e, diferentemente do que diz o senso comum, ele jamais representava a cultura estadunidense como superior às demais, muito pelo contrário. O dito inferior sempre saía ganhando.

De que forma a sua experiência pregressa como crítico dá o tom das referências audiovisuais do teu livro?

Fiz durante uns anos a coluna de filmes de TV do Globo. Era um trabalho insano, não só por ser diário, como por não existir internet na época e o espaço ser sempre do mesmo tamanho, houvesse só um ou 30 filmes. Eu via, lia e escrevia cada coisa que começava a inventar sinopses malucas. Achei que essas fichas seriam um bom exemplo do mundo que eu queria retratar. Mas a realidade continua superando minha imaginação.

Que Brasil está refletido nas quase utopias de "Martina"?

Comecei a escrever esse livro em 1996. Ele é pré-"Matrix". Se tivesse saído na época, seria considerado visionário. Parei por motivos diversos e resolvi retomá-lo agora. Mas mantive a ideia de ser um livro que imaginaria o futuro a partir dos anos 1990. Terminei de "Martina" como se o tivesse escrito nos anos 1990. Por mais que eu soubesse naquela época que as coisas caminhavam para o abismo e que estávamos cercados de idiotas por todos os lados, jamais imaginaria que iríamos regredir a um fascismo tão tosco. Imaginava algo mais um tiquinho mais sofisticado. O cinismo foi a marca dos anos 1990. O cinismo pode não ser nobre, mas requer inteligência. A preguiça venceu.

 

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