Por: Rodrigo Fonseca (Especial para o Correio da Manhã)

Gonçalo M. Tavares: 'O papel da arte não é ser uma massagem para relaxar'

| Foto: Divulgação

Entre os romancistas lusófonos que edificaram sua prosa sobre os escombros do jugo colonial, usando o Tempo como argamassa, Gonçalo Manuel de Albuquerque Tavares é dos que mais (e melhor) descortinam lirismo na ontologia de modos de ser e estar onde a solidariedade pode brotar das ruínas mais sombrias. "Uma Menina Está Perdida No Seu Século À Procura do Pai" é um desses muitos (bons) livros dele que retratam o esboçar do amor no colapso civilizatório.

É o livro que o escritor - nascido na Luanda de 1970 e radicado em Portugal na sequência - vai debater no Centro Cultural Banco do Brasil nesta quarta-feira (11), às 17h30, no já tradicional Clube de Leitura CCBB, evento gratuito, organizado sob a curadoria da poeta e professora Suzana Vargas. Os ingressos disponíveis na bilheteria do CCBB ou pelo site bb.com.br/cultura a partir das 9h do dia do encontro.

Qual é a relevância de eventos como o Clube de Leitura no CCBB para a oxigenação de seu contato com os leitores?

Gonçalo M. Tavares: Penso que o contato com os leitores, principalmente após eles lerem os livros de maneira concreta, é interessante, por levantarem questões por vezes de um ponto de vista diferente. Nesse aspecto, muitas vezes, há umas perguntas boas que nos fazem repensar alguns caminhos do nosso trabalho.

A que mitologias do povo lusófono, de uma língua que contaminou parte do mundo via mar, a sua obra se reporta?

Escrevi "Uma Viagem à Índia", esse, sim, um livro que dá voltas na epopeia de "Os Lusíadas". É uma espécie de epopeia triste, de micro façanhas, passada no século XXI. É uma epopeia de um micro herói, um anti-herói, e me interessava pensar nessas utopias modestas que o século XXI nos permite. Não olho para a História de Portugal nesse sentido mais mitológico. Olho mais num sentido de como a língua nos permite pensar. Nesse aspecto, a língua portuguesa de Portugal está misturada, e bem, com o português falado no Brasil e o português falado em Angola, por toda a África. Esta língua está sempre a mudar. Está sempre mais forte, inclusive com essas contaminações boas.

Que guerras, reais e imaginárias, compõem "Uma Menina Está Perdida No Seu Século À Procura do Pai"? A que tradição a sua II Guerra se reporta?

É a história de uma menina com 14 anos que está sozinha, perdida. Há um homem, um estranho, que talvez seja um sujeito perigoso, mas que, surpreendentemente, vai ajudar a menina a procurar o pai, por várias cidades de uma Europa pós-segunda guerra. Há um hotel estranho com nomes de campos de concentração. Ele replica o mapa de localização dos campos nazistas. É um livro que tem a ver com algo muito biográfico, no sentido de ser uma menina à procura do pai. Uma situação quase que de pai para filha e de filha para pai. Algo que parece quase a vida doméstica de todo mundo. Mas essa procura pelo pai, freudiana, faz com que alguns leitores se perguntem se esse pai existe ou se é uma fantasia. Essa procura tem por paisagem a história do século XX.

Que perversão reside no limite entre ensaio, filosofia e ficção, que entram em fricção na sua forma de escrever?

A literatura é uma mistura do tudo. Um texto pode ser também ensaísta, pode pensar, pode refletir, pode ter poesia, pode ter tudo. Gosto muito da palavra "texto" que o Roland Barthes usa, por sugeri que, de alguma maneira, essa expressão pode vir a ser tudo, depois chamamos de poesia, ou do que quisermos. Não me interessa a literatura fácil, de apenas contar historinhas para entreter. O papel da arte não é ser uma massagem para relaxar. Pelo contrário, deve ser para acordar, para despertar. Espero que seja um livro para desassossegar e acordar as pessoas.

Há um lugar muito peculiar para o Tempo na sua escrita de verbos de ação. Qual é o tempo da solidão da escrita e do personagem?

Minha escrita sempre há vários tempos. Eu escrevo rápido, mas, depois, demoro muito tempo para rever, a cortar, até ficar sintético. Ao mesmo tempo, há o tempo da narrativa. Há uma coisa incrível de a gente, no século XXI, estar a escrever sobre o passado colonial pós-II Guerra. Essa é a grande liberdade da ficção que não podemos perder, é a possibilidade de um escritor se colocar na cabeça de outras pessoas, por exemplo. Pôr-se em outros tempos, em outros espaços. Nós podemos imaginarmos enquanto narradores na cabeça de qualquer pessoa.

O que a consagração traz de afago, de risco e de vívido a um escritor que, como o senhor, angariou o elogio de Saramago e da crítica?

Sempre me sinto muito honrado quando dão atenção aos meus livros e sentem que eles trazem alguma coisa de bom ou de forte. É evidente que o Saramago, no que ele disse sobre o meu trabalho, com coisas tão simpáticas e extraordinárias, tão fortes, fez eu me sentir muito reconfortado. Ouvir impressões de grandes autores, espanhóis e brasileiros, é bom. Essa ideia de ser lido pelos pares, outros escritores, é muito bonito, porque eles sabem da dificuldade de escrever um livro forte após anos de tradição. É um carpinteiro dizer que outro carpinteiro está a fazer um belo trabalho. É uma energia diferente que se recebe, muito boa.

O que a dimensão inaudita de conexão entre Hanna e Marius revela da solidariedade?

A ligação entre Ana e Mário é surpreendente. Como duas pessoas distintas podem se tornar companheiras. Como um homem como Mário, alguém que está no limite do criminoso, a fugir, pode, de repente, parar sua vida e ganhar afeto por uma menina, como se fosse seu pai. Essa solidariedade imprevista é qualquer coisa que está presente no humano. Muitas vezes o pior dos humanos se mostra muito solidário. Temos o oposto disso também: os que parecem muito companheiros se mostram seres humanos terríveis. A bondade e a maldade, a compaixão e o desprezo, surgem da maneira diferente de como se prevê.