Coragens e empoderamentos se entrelaçam na carpintaria poética da carioca Maria Rezende nos versos "A gema amarelinha que eu como/ com gosto de manhã/ é o óvulo não fecundado da galinha/ um óvulo como o que eu jogo fora/ ao ritmo de um por mês desde 1989/ O óvulo não galado desde meus onze anos/ não é comido por nenhuma espécie/ - embora hoje seus restos sangrentos alimentem as plantas da sala". Pouco antes desse desabafo, ela escreve: "Que meu coração não vai nunca/ deixar de me bater/ dentro/ fora/ de levinho/ batidão".
Os dois excertos de seu jorro lírico encontram represa nas páginas de "Sim", livro que sai do prelo para as prateleiras das livrarias de todo o país. Esse ritmo de alternância entre alarmes, levezas, asperezas e fogo-fátuo de sua carpintaria criativa ilumina não apenas a obra poética de Maria, mas também sua estética como montadora.
Filha da produtora Mariza Leão e do diretor Sérgio Rezende, ela alçou voo próprio, a partir de 2006 (com "Por Acaso Gullar") e estabeleceu uma assinatura estilística singular em sua forma de editar filmes. Passou pela franquia milionária "Meu Passado Me Condena" (2913-2015), editou por exercícios de ousadia tipo "Como É Cruel Viver Assim" (2017), de sua irmã Julia Rezende, com quem trabalhou ainda em "Depois a Louca Sou Eu" (2019). Soltou sua imaginação sem freios em "Eike, Ou Tudo Ou Nada", de 2022, com Dida Andrade e Andradina Azevedo na direção.
Na entrevista a seguir, Maria faz uma analogia entre a arte de escupir versos e a artesania de editar planos.
Se "o inesperado é o único deus possível e não se comove com velas acesas", conforme você defende em seus versos de "Sim", que lugar ele toma pra si no processo de criação da poesia, da sua poesia?
Maria Rezende: O inesperado é o deus da minha poesia. Eu raramente planejo escrever um poema. Às vezes eles nascem no susto, de um espanto que logo vira verso, outras vezes nascem de um desejo de expressar algo, mas eu controlo bem pouco o processo. Posso passar dias com uma frase na cabeça e de repente no meio de uma tarde de trabalho o poema chega, inesperadamente.
Poemas como "Espádua" e "Leme" desenham a palavra "Não" num livro que se chama "Sim" O que se nega? O que se fala de perda um livro sobre uma voz poética que acha seu espaço? O que há de simbólico e místico nas palavras "Sim" e "Não" na sua escrita?
Eu sinto que o "Sim" é um livro de luz e sombras, e que revela essa minha mania às vezes irritante, mas, em geral, maravilhosa de insistir na vida. Como a (poeta) Valeska Torres aponta na orelha, e que foi, pra mim, uma surpresa, a palavra "não" aparece mais no livro do que a palavra "sim". O "sim" se revela porque a cada perda é preciso seguir e reinventar, e os poemas vão fazendo esse percurso de "cai, levanta", "cai, levanta", que é viver. "Sim" e "Não" são palavras fundamentais, né? Uma terapeuta minha dizia que o "sim" só tem valor com o "não". É sobre ser capaz de fazer escolhas, de alguma forma.
Onde é que os fatos da vida e os fatos da sua vida fazem morada em "Sim"? De que maneira o livro conscientemente conversa com vivências e testemunhos?
O "Sim" é meu sexto livro e já faz uns anos que eu estou em paz com o fato da minha poesia ser muito pessoal. Fatos da minha vida estão muito presentes, espero que de uma forma poética o suficiente pra causar identificação em quem lê, e não a sensação de estar lendo páginas de um diário. Para além dos fatos, o livro traz meu olhar sobre o mundo e os acontecimentos, em poemas que falam sobre a descoberta de um novo planeta pela Nasa ou reflexões sobre a diferença entre não poder e não querer, por exemplo. Mas há mesmo essa camada mais confessional, relatos de amores que chegam e que vão, de uma perda gestacional ou um tratamento de reprodução assistida. A vida e a poesia se misturam, inevitavelmente.
De que forma a prática da poesia, em sua técnica de armar as palavras, mistura-se ao seu olhar de montadora, na edição das imagens?
A poesia se infiltra em todos os aspectos da minha vida pessoal e profissional. O George Lucas, em uma entrevista, diz que "montagem é como poesia", aí, ele para um segundo e se corrige: "montagem é poesia". Meu trabalho como montadora tem a ver com ritmo, com emoção e sutileza: quanto tempo deixo em cena o ator que está falando ou o que está ouvindo e reagindo ao que é dito? Quanto dura uma lágrima ou uma cara engraçada? Como no poema: qual o tamanho de um verso e qual a melhor palavra ali? "Alegria" ou "felicidade" são diferentes não só no sentido, mas no tamanho e no ritmo que trazem pro poema. E sinto que o cinema também influencia minha escrita, em poemas que são quase curtas-metragens e trazem muitas imagens, como "Bruta flor" e "A noite derradeira". São processos muito entrelaçados mesmo.