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'O objeto-livro é meu lugar de performance'

Defensor da tese de que a escrita poética é um processo intenso e insubordinado, Fred Caju dá som, fúria e papel a seu lirismo nas páginas de 'Bívio' | Foto: Divulgação

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Encontra-se mel nas páginas de Bívio: "Foi na primeira vez/ que quebrei seu sorriso/ que você consertou/ o meu em definitivo". Acha-se dor também: "Você, barco a vela,/ disco-voador,/ submarino amarelo,/ metrô, bicicleta;/ seguia pra bem longe/ sem se importar como". Tem alerta: "Já usei por epígrafe/ o poeta mineiro que/ a literatura estragou". Tem até remanso: "Somente por você/ saber de cor mais nomes/ de flores que automóveis,/ eu já não precisava/ de mais nenhum motivo/ pra desfazer as malas,/ recusar o trabalho/ e queimar a passagem".

Há de um tudo no poemário que o versador, editor e artesão pernambucano Fred Caju lança este mês pela Cepe Editora, com noite de autógrafos agendada para esta sexta-feira, na Livraria Travessa de Ipanema, às 19h. Autor de "Nada Consta" e "O Revide das Pequenas Maldades", ele lapida a pedra lascada de sua fúria e enverniza de invenção a pedra polida do requinte gráfico. Num papo com o Correio da Manhã, ele destila lirismo ao falar da dimensão resistente, ecológica e politicamente consciente de publicar um livro no Brasil.

Que propostas decoloniais te servem de bússola e de leme?

Fred Caju: Retrabalhar a linguagem é indispensável. Dentro dos poemas gosto de desautomatizar a quebra do verso renegando uma separação silábica normativa. É um recado de revide ao idioma imposto pelo derramamento de sangue. Como editor, sempre busquei aproximações e publiquei autoras e autores com corpos e vivências outroras renegados pelo cânone. Como diagramador e projetista gráfico, eu me utilizo apenas de softwares e tipografias livres para compor a identidade visual das publicações. Como artesão do livro, estou sempre repensando os recursos e insumos que o livro demanda para existir, tentando extrair potências do papel de maneira ambientalmente responsável. Como livreiro, procuro meios e parcerias alternativas para a venda dos livros que não estejam reproduzindo estruturas viciadas. Isto tem sido parte de um trabalho de 15 anos. Intenso, insubordinado e cansativo. No "Bívio", porém, eu me autorizei ao descanso. Procurei a Cepe, por ser uma editora que já tinha publicado o "Nada Consta", por conta do prêmio Hermilo Borba Filho de Literatura, em sua 5ª edição, do qual fui um dos vencedores, e por conseguir um preço final acessível ao livro. Foi um poemário de escrita lenta, sem pressa em se tornar publicação. Quando terminei, eu havia me tornado vegano e acabei precisando revisitar muitos poemas para não reproduzir algo especista dentro do livro. Ou seja, mesmo me propondo ao descanso, vi que descanso não existe quando se trata de linguagem.

Qual é o espaço consciente de memória que demarca sua lírica e que recordações ela aponta ou desabrocha?

Cada livro que publico traz recortes de memórias restauradas e esquecimentos que fomentam memórias inventadas. Não sei escrever sem a vivência do corpo. Trabalhar temáticas para cada poemário faz com que o tempo seja espiralar na minha escrita. No "Bívio", eu me centrei em memórias de primeiros encontros e descobertas no "Livro I - verde-água" e, no "Livro II - uma noite para um barco", trabalhei a despedida e a ruptura. Em ambos, a memória surge como elemento protagonista. Em outros livros, o exercício de recordar para escrever ou escrever para recordar apontaram para outras temáticas. Gosto de trabalhar poemas em série, focando em algum assunto ou em alguma forma.

De que maneira a performance e a declamação fazem parte da sua rotina de criação?

Tenho uma filiação maior à palavra escrita. Gosto de explorar a imagem do poema, o posicionamento da palavra na página. De pensar a página, sobretudo a página analógica, finita. Sou encadernador, artesão do livro. A quadratura do livro é um local de criação para mim. A oralidade surge para limpar o texto de ruídos e cacofonias, muito mais como um artifício de edição do que criação. O objeto-livro é meu lugar de performance. Pensar sua carnadura para criar um ambiente hóspito para o texto é um desafio criativo que faz parte da minha rotina. No "Bívio", assim como meus livros anteriores, projeto gráfico e diagramação são pautas de edição. Os poemas do livro possuem 40 versos. E foi pensado um desenho que valorizasse isto, por exemplo.

Que espaço existe para a poesia na arte brasileira hoje em termos mercadológicos, na seara editorial e na internet?

Eu tenho me afastado cada vez mais das lógicas mercadológicas. Tenho centrado forças em projetos de oficinas, de diálogos com escolas públicas e bibliotecas comunitárias. Abandonei as redes sociais para ter mais tempo com a leitura, a pesquisa, a elaboração de novos projetos e o aperfeiçoamento de técnicas de encadernação e de produção gráfica. Como editor, é impossível eu não olhar o livro como objeto, como bem cultural, como mercadoria, mas sinto que há uma lacuna na formação de público leitor que não será o mercado nem a internet que vai sanar. É preciso parar de ver as pessoas apenas como consumidoras. Não sou o melhor profissional do livro a responder sobre o panorama da poesia dentro do mercado. Eu me coloco à revelia do que o rege e ele não me interessa como objeto de estudo.

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