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O mel mais nobre

Por Flávia G. Pinho (Folhapress)

Elas são pequeninas, inofensivas -porque não têm ferrão - e viraram estrelas no universo da alta gastronomia. Cada espécie, e há 244 catalogadas no Brasil, produz um tipo diferente de mel, cuja complexidade tem encantado os chefs de cozinha. Mais líquidos do que o mel da abelha Apis Mellifera, aquela de origem europeia e temperamento mais zangado, os meles (ou méis, ambas os plurais estão corretos) das abelhas nativas brasileiras são ácidos, menos doces, e devem ser armazenados na geladeira, pois fermentam rapidamente.

O que têm de gostosos têm de raros. Uma colmeia das espécies mais produtivas não fabrica mais do que dois quilos por ano, contra os 25 quilos anuais das colmeias de Apis Mellifera.

O volume de mel, armazenado em estruturas ovaladas de cera e própolis que lembram microbarris, é tão reduzido que a extração tem de ser feita com seringa. Isso explica o preço salgado: potinhos pequeninos, com apenas 40 gramas (o equivalente a duas colheres de sopa), custam a partir de R$ 28, mas podem passar fácil dos R$ 100 no caso das espécies mais raras.

Tornar esses méis mais conhecidos do grande público e, quem sabe, fazer o preço baixar em função da demanda maior é um dos objetivos do livro "67 Receitas Com Mel de Abelhas Nativas". As receitas, assinadas por 49 chefs, confeiteiros e mixologistas, vão de tira-gostos a drinks e passeiam por méis de todos os biomas brasileiros.

Aprende-se, por exemplo, a preparar o peixe com cítricos da chef paranaense Manu Buffara, eleita a melhor chef mulher pelo 50 Best América Latina 2022 - o prato leva mel de manduri, abelha sulista que só dá as caras entre os estados de São Paulo e Rio Grande do Sul.

Já a tapioca de beterraba do chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó, é regada com mel de tubuna, abelha pretinha que se espalha por vários estados, de norte a sul.

Para o drink Rainha, à base de cachaça, o bartender Jean Ponce, do Guarita Bar, escolheu o mel da minúscula jataí, um dos mais fáceis de encontrar, por estar entre os mais produzidos país afora.

Também tem receita para o café da manhã. A chef Paola Carosella ensina o preparo de leite dourado com cúrcuma, adoçado com mel de abelha borá, enquanto Bela Gil escolheu o mel de jandaíra para turbinar seu mingau de aveia com coco ralado e banana-da-terra.

Editado pelo Instituto Atá, o livro não tem fins lucrativos - a versão impressa com capa dura será vendida por R$ 73,50, mas qualquer um poderá fazer o download gratuito no site www.institutoata.org.br.

Um dos organizadores da publicação e uma das maiores autoridades do país no assunto, o ecólogo Jerônimo Villas-Bôas, reconhece que o aumento de demanda é projeto de longo prazo, já que o brasileiro come muito pouco mel, mesmo considerado o tipo mais comum. "O consumo per capita é de 170 gramas por ano; os alemães consomem três quilos por ano", compara.

Mas ele festeja o fato de que as abelhas nativas, aos poucos, estão furando a bolha dos estudiosos e chef de cozinha mais engajados.

"Vejo que o mundo dos abelhudos cresce exponencialmente, gente interessada em criar abelhas como pet. Há diversos grupos de WhatsApp e Facebook e muitos perfis de criadores no Instagram. O que era coisa de matuto do sertão está virando pop."

Como acontece em outros setores envolvidos na produção artesanal de alimentos, a legislação brasileira não estimula os criadores. Desde 2017, os produtos das abelhas nativas são reconhecidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), mas nem todos os estados criaram seus regulamentos técnicos.

"Além disso, caímos naquela questão estrutural, de exigências voltadas ao modelo industrial. Só se regulariza quem tem alto poder de investimento", chia Jerônimo. "Com uma produção em maior escala, o preço poderia cair pela metade."