Padrões de feminilidade através do tempo
'Pequeno Arsenal' parte de fotografias de mulheres internadas em manicômio parisiense do século 19 para criar reflexão sobre controle do corpo feminino
As bailarinas Monique Ottati e Deisi Margarida descobriram um arquivo perturbador que se tornaria o ponto de partida para uma investigação artística profunda sobre as representações do feminino. Trata-se de centenas de fotografias feitas com mulheres internadas no Hospital Salpêtrière, em Paris, o maior manicômio feminino da França no final do século 19. Essas imagens, que documentavam supostos sintomas de histeria, revelaram às artistas como o corpo feminino foi historicamente patologizado e controlado pela ciência médica da época.
O espetáculo "Pequeno Arsenal", em cartaz no Mezanino do Sesc Copacabana, surge dessa descoberta inquietante. Com direção de Lavinia Bizzotto Cheir e dramaturgia de Carolina Nóbrega, a obra propõe uma reflexão coreográfica sobre como comportamentos considerados desviantes do padrão feminino ideal foram transformados em doença mental. As mulheres internadas no Salpêtrière eram classificadas como loucas, desobedientes ou selvagens, servindo de cobaias para a invenção de uma condição psiquiátrica que buscava domesticar corpos divergentes.
A pesquisa revelou aspectos perturbadores sobre o funcionamento do manicômio parisiense. Estúdios fotográficos foram instalados no hospital como tecnologia para documentar e reforçar hipóteses científicas sobre a histeria. As imagens não circulavam apenas nos meios médicos, sendo também divulgadas pela imprensa popular da época. "Na iconografia da Salpêtrière temos fotos em movimento e fotos posadas, utilizadas pela ciência para reforçar o que os médicos desejavam que fosse comprovado. Havia ali a fabricação proposital de uma ilusão patológica, o que escancarou ainda mais que havia um problema cênico de natureza coreográfica", explica Monique Ottati.
O corpo e o movimento eram observados como sintomas patológicos. Ataques de riso, saltos, pular e pisar descontroladamente, contorcer o corpo e perda de controle tornavam-se evidências de histeria. Tratava-se de uma doença performativa, onde mulheres podiam fingir comportamentos diante de comandos e plateias médicas masculinas. A proximidade entre histeria e dança era tamanha que algumas internas ganharam fama por suas performances como histéricas, sendo posteriormente contratadas como artistas em ambientes de entretenimento.
Para confrontar esse arquivo psiquiátrico, as criadoras desenvolveram uma estratégia artística singular. Deisi e Monique criaram um contra-arquivo reunindo fotografias de artistas mulheres dos séculos 20 e 21 que repelem, contradizem ou questionam a visão hegemônica sobre feminilidade. Entre as artistas selecionadas estão Susan Meiselas, Carrie Mae Weems, Ana Mendieta e Francesca Woodman, cujos trabalhos também servem de referência para a composição cênica.
Nos corpos das duas intérpretes, essas imagens históricas e contemporâneas ganham nova vida. Atravessadas por suas próprias histórias e sensibilidades, elas transformam o arquivo em experiência viva, fazendo das fotografias um território de invenção e reinvenção de si. "Da coleção infinita dessas imagens, captamos não só a forma — os contornos e posturas — mas também os estados afetivos, a atmosfera, as texturas emocionais que atravessam as mulheres retratadas. São memórias corporais que se insinuam: fragilidade, resistência, excesso, suspensão", destaca Lavinia Bizzotto Cheir.
A dramaturgia do movimento ultrapassa a reprodução iconográfica, abrindo espaço para imaginação, experiência sensorial e reinvenção cênica desses corpos em trânsito. O espetáculo aproveita a relação inerente entre performer e observador para tensionar as dinâmicas reveladas pelo arquivo histórico, jogando entre o ver masculino e o ser visto feminino, entre gesto espontâneo e pose, entre verdade científica e farsa da representação.
"O público do Pequeno Arsenal será convidado a arranhar a sensação de que seu modo de ver é algo 'dado', reconhecendo seu modo de ver como algo 'construído', ao se colocar diante de performers que explicitam o jogo de captura e fuga daquelas que ocupam historicamente o lugar de objetos exibicionistas de um olhar masculino", comenta a dramaturgista Carolina Nóbrega. A proposta é desnaturalizar o olhar sobre esses arquivos, deixando ver o que está fora do enquadramento sugerido.
"Quando olhamos para os arquivos da Salpêtrière é necessário desnaturalizá-lo, deixando ver o que está também fora do enquadramento sugerido. Imaginar o excesso desse corte é algo que esteve presente no nosso processo, como um acesso à ficção necessária ao trabalho", explica Deisi Margarida. As artistas levam para a cena, tanto na dramaturgia quanto na coreografia, o problema da montagem presente em toda cena e em todo arquivo, montando e desmontando-se diante do público constantemente, com figurinos e sequências que explicitam o jogo de uma farsa encenada.
SERVIÇO
PEQUENO ARSENAL
Mezanino do Sesc Copacabana (Rua Domingos Ferreira, 160)
Até 5/10, quinta a domingo (20h30)
Ingressos: R$ 30, R$ 15 (meia), R$ 10 (associado Sesc), gratuito (PCG)
