Teresa Lampreia: 'Contar histórias para um país inteiro é um ato estético, ético e político'
Dá gosto ver (e ouvir) Teresa Lampreia falar de audiovisual. Fala não só de sua experiência vasta na direção de telenovelas, incluindo folhetins que deixaram o fôlego do povo brasileiro suspenso (tipo "O Clone"), como também de seu empreendedorismo para botar no ar um canal da biosfera digital - o WhE Play, já no ar.
"Em 1996, entrei na TV Globo como estagiária na equipe de 'O Rei do Gado'. Ali começou a minha vida profissional. Entrei com um caderno cheio de anotações e saí, anos depois, carregando histórias, cicatrizes e a convicção profunda no poder do audiovisual', conta ela, não só em papos com amigos, colegas e fãs, mas num livro... livraço, aliás.
"Somos Feitos de Histórias" junta memórias, reflexões, prospecções, desabafos e delicadezas. Já à venda, a publicação terá lançamento nesta segunda na Livraria da Vila, em São Paulo, às 19h. Na quinta, o lançamento será em Brasília, no Shopping Iguatemi. No papo a seguir, ela faz um balanço de sua prosa inclusiva.
De que maneira a expressão literária traduz as suas inquietações como artista audiovisual, empreendedora e mãe?
Teresa Lampreia - A escrita surgiu para mim como um gesto de reorganização interna — uma forma de dar nome ao que sempre atravessou a minha vida profissional e pessoal: as histórias como eixo da existência. Como artista audiovisual, sou movida por imagens, ritmos e relações; como empreendedora, penso em modelos que cruzam impacto e sustentabilidade; como mãe, caminho diariamente entre a responsabilidade afetiva e um futuro possível. Escrever este livro foi unir essas três forças numa mesma pergunta: que legado as histórias deixam no mundo? O texto nasceu justamente de um momento de reinvenção — da minha carreira após a saída da Globo, do luto pela morte do meu pai e de um mergulho profundo no sentido de propósito. Surgiu do desejo de compreender como o entretenimento de impacto social pode gerar transformações reais, influenciar políticas públicas, ampliar conhecimento e construir um legado espiritual e material para novas gerações, especialmente para a minha filha, Maria Carolina.
E quais foram as descobertas nesse processo?
Ao longo do processo, percebi que a minha inquietação central sempre foi a de ampliar a voz — não apenas a minha, mas a de todos os que acreditam que narrativas podem mudar pessoas, e pessoas mudam o mundo. A plataforma WhE Play nasce desse movimento. Criado em 2024 por mim e por Yael Steiner como cofundadoras, com a Off Grid, Milton Neto e Álvaro Paes de Barros como sócios, o canal materializa anos de pesquisa, curadoria e visão. São mais de 500 horas de conteúdo pautado pelos ODS, pelo Pacto Global e por um compromisso radical com a inclusão. Em 2025, lançamos o nosso primeiro original, "(R)Evolução 639", criado pela empreendedora Alessandra Gaspar e pela sua equipe, trazendo a Pedagogia dos Afetos — um método que parte da ideia de que não aprendemos a amar, nem a nos relacionar. A série fala de amor, autoconhecimento e vínculos no tempo presente e já caminha para a segunda temporada, agora com dramaturgia, para que o público vivencie, na prática, essa pedagogia transformadora. Escrever este livro foi também construir uma estrutura narrativa que espelha o próprio tema: híbrida, viva, em espiral. Entre memória, ensaio e análise setorial, percorro temporalidades e geografias, do pessoal ao coletivo, para discutir como o entretenimento se tornou, hoje, um território de educação, cultura, diplomacia e responsabilidade ética.
Em que medida a sua experiência na TV norteia o livro e como ela aponta novos caminhos?
A televisão foi a minha primeira grande escola — de escala, de narrativa e, sobretudo, de responsabilidade. Trabalhei em produções que conversavam diariamente com mais de 40 milhões de pessoas, e essa dimensão mudou para sempre a minha percepção sobre o papel do audiovisual na formação de imaginários coletivos. A TV ensinou-me que contar histórias para um país inteiro é um ato estético, ético e político. Essa experiência constitui a espinha dorsal do livro. Ao revisitar a minha trajetória com distância afetiva e crítica, percebi que a TV não me deu apenas técnica: deu-me um sentido de missão. Dirigir "O Clone", por exemplo, foi um marco. Em 2001, logo após o atentado às Torres Gémeas, falar sobre a cultura muçulmana na televisão brasileira foi um gesto de coragem e delicadeza. Quase não entrámos no ar. Mas, quando a obra finalmente chegou ao público, compreendemos a potência transformadora do soft power: culturas ganham valor quando são tratadas com respeito, beleza e profundidade. E, quando realizámos a campanha de prevenção à dependência química — premiada pelo Facebook dos Estados Unidos e pelo DEA americano — ficou evidente que o entretenimento pode educar, tocar e salvar vidas.
Existe um rol poderoso de citações e de figuras reais evocadas na sua escrita. O que elas apontam acerca da condição humana no planeta hoje?
Os "personagens" do livro, embora não ficcionais, também carregam a dramaturgia que a tevê me ensinou. O meu pai, diplomata, opera como um eixo ético e simbólico que atravessa a narrativa. Minha filha representa o futuro para o qual escrevo. Profissionais do audiovisual surgem como mentores e parceiros que ampliam o campo de visão. Referências como Paulo Freire, Byung-Chul Han, bell hooks e Fernanda Montenegro criam uma constelação intelectual que ilumina a reflexão. Essa experiência aponta novos caminhos: a compreensão de que precisamos criar um entretenimento de impacto social como indústria. Um audiovisual que concilie propósito e escala, emoção e pensamento crítico.