Estrela de Ouro na constelação da autoralidade

Espécie de 'Ainda Estou Aqui' da Líbia e drama antirracista da África do Sul se destacam na corrida pelo cobiçado troféu marroquino, que tem o cearense Karim Aïnouz entre seus jurados

Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

'My Father and Qaddafi', um 'Ainda Estou Aqui' líbio

Espécie de 'Ainda Estou Aqui' da Líbia e drama antirracista da África do Sul se destacam na corrida pelo cobiçado troféu marroquino, que tem o cearense Karim Aïnouz entre seus jurados

Faltam dois longas-metragens - o russo "Memory" e o espanhol "Forastera" - para terminar o rol de treze concorrentes à Estrela de Ouro do 22º Festival de Marrakech, que tem o diretor cearense Karim Aïnouz entre os jurados. Esses concorrentes que faltam vão passar pelo Palácio do Congresso do Marrocos nesta sexta-feira. No sábado, o júri presidido por Bong Joon Ho - o cineasta sul-coreano ganhador de quatro Oscars e uma Palma de Ouro por "Parasita", de 2019 - anuncia as produções vencedoras, mais a melhor atriz e o melhor ator.

Há um favoritismo no ar em torno de um documentário que pode ser chamado de ensaio "autogeográfico": "My Father And Qaddafi", dirigido pela atriz Jihan K, com CEP entre a Líbia e os EUA. É o título mais sensível entre todos os concorrentes vistos até agora e se alinha com a corrente documental que foi apelidada, pela crítica latino-americana, de "álbum de família". É uma vertente na qual cineastas falam de parentes (como "Elena", de Petra Costa, ou "Diário de uma Busca", de Flavia Castro) para expor feridas nacionais ou universais.

Em sua eletrizante narrativa, Jihan recria a figura de um pai de quem tem ralas lembranças: Mansur Rashid Kikhia. Advogado especialista em direitos humanos, ele foi ministro das Relações Exteriores em solo líbio e embaixador do país junto às Nações Unidas. Depois de servir sob o regime brutal de Muammar Kadhafi (1942-2011), ele abandona o governo e vira o líder da oposição pacífica. Para muitos, chegou até mesmo a ser visto como um sucessor em potencial de Kadhafi, numa consagração popular que terminou com a sua "desaparição", em 1993. Sua mulher e suas filhas fazem de tudo para saber o que se passou, num caso que faz lembrar o Brasil da ditadura militar retratado em "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles.

"Filha de mãe síria, eu nunca cheguei a viver na Líbia, o que me forçou a me relacionar com a cultura do meu pai sob o prisma de uma diáspora, mas aprendi a definir a palavra 'família' em relação a países que pertencemos, direta ou indiretamente. Meu pai morreu pelo território em que acreditava e meu amor por ele segue", diz Jihan K ao Correio da Manhã em Marrakech.

Divulgação - O sul-africano 'Laundry' trata de paternidade sob a luz do silenciamento

Seu filme levanta feridas geopolíticas explícitas de um povo. É o mesmo caso de "Laundry", da África do Sul, que pode dar à cineasta Zamo Mkhwanazi, nascida em Durban, o Grande Prêmio do Júri ou a láurea de Melhor Direção. Assim como "My Father And Qaddafi", seu longa trata da paternidade num contexto de silenciamento. Tudo se passa em 1968, quando o dono de uma lavanderia, Enoch (o brilhante ator Siyabonga Shibe), é assolado pela brutalidade de racistas num país que fez o apartheid uma prática de controle.

Entre as atuações que mais e melhor deslumbraram o Marrocos do último dia 28 até hoje, destaca-se o desempenho da filipina Ruby Ruiz em "First Light", produção de US$ 1,6 milhões, financiada em parceria com a Austrália, no papel da irmã Dolores. Fiel ao Altíssimo, ela passa a contrariar a subserviência a dogmas da Igreja depois de ver como um operário ferido é tratado... inclusive pelas agentes clericais que deveriam amparara-lo. Seu diretor, James J. Robinson, um fotógrafo de 30 anos, estreia na realização de longas esbanjando destreza, fiel à genealogia dos mestres audiovisuais das Filipinas, como Lav Diaz e Brillante Mendoza.

"Sou filho de filipina, crescido na cultura australiana, mas acompanho o trabalho de artesões da terra de meus ancestrais, como o diretor Lav Diaz, que mudou a minha relação com o tempo no cinema. Filmei em Luzon, uma ilha no norte das Filipinas, e usei a referência de Joana D'Arc para pensar a personagem de Dolores e sua relação com o Cristianismo", diz Robinson.

Nessa linha de delitos institucionais de "First Light", Marrakech trouxe da República Tcheca um conto sobre relações tóxicas de comando chamado "Vozes Rachadas" ("Broken Voices"), no qual o diretor Ondrej Provazník recria o abuso sofrido por cantoras de um coro em Praga.

"Já fizeram analogias entre o meu filme e 'Tubarão' de Spielberg, citando o avanço de um predador que nunca sabemos quando vai atacar", disse Provazník ao Correio.

Sempre bem-vindo em mostras competitivas, o melodrama à moda Janete Clair bateu ponto em Marrakech em "Derrière Les Palmiers", de Meryem Benm'Barek, do próprio Marrocos. A premiada diretora de "Sofia" (2018) nos sai com uma espécie de "Selva de Pedra". Seu roteiro decorre em Tânger, onde o jovem Mehdi (Driss Ramdu) vê a sua relação com Selma (Nadia Kounda) abalada quando conhece Marie, uma francesa rica (Sara Giraudeau).

"Todos nós carregamos uma solidão interna, alimentada pelos fantasmas ao nosso redor, mas Mehdi, uma figura em circulação, vive o desejo", diz Meryem. "No desejo, ele muda".

Na coletiva de apresentação do júri, Bong Joon Ho deixou suas intenções explícitas ao analisar longas de diretores que têm no máximo dois filmes no currículo: "Descobrir novas vozes é importante, pois é da juventude que a gente espera gestos de ousadia, desafiadores". Resta saber qual dos cineastas em concurso desafia esses padrões.