Ntobeko Sishi: 'Racismo é assumir que aparências justificam práticas de opressão'

Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Ntobeko Sishi, cantor, compositor e ator sul-africano

Quando se googla o nome de Ntobeko Sishi na web, o YouTube conduz a busca a uma excursão sonora que entorpece tímpanos com o suingue das canções "Either Way" e "What You Need". Elas fizeram desse cantor e compositor sul-africano de 27 anos um ídolo jovem em sua nação. Sua devoção à música foi essencial para que a diretora Zamo Mkhwanazi assegurasse a ele o papel central de "Laudry", o mais convulsivo dos 13 longas-metragens em concurso pela Estrela de Ouro do Festival de Marrakech, que termina neste sábado.

O filme viaja no tempo até 1968 e se concentra em uma lavandaria familiar que opera numa zona exclusiva para brancos da África do Sul daquela época, num arranjo político raro, só concedido a seu proprietário, o comerciante Enoch (Siyabonga Shibe), por conta de favores prestados por ele a autoridades. Embora esteja tecnicamente autorizado a trabalhar no bairro, Enoch já não desfruta mais de proteção contra a intimidação de um governo opressor. Em casa, ele está determinado a garantir um futuro para os seus filhos, em particular seu primogênito, Khuthala (papel de Sishi), a quem espera um dia entregar as rédeas de seu negócio. Mas os sonhos de Khuthala de seguir uma carreira musical, entre o jazz e o rock, ao lado de uma cantora local, chocam-se com os limites impostos pelo Estado. Não se ouve falar em Nelson Mandela no bairro deles. Só se escuta xingamento de racistas.

"Laudry" é duro, mas transcende a aspereza com seu pleito de resiliência, que Sishi amplia nas palavras que trocou com o Correio da Manhã na conversa a seguir, no Marrocos.

Que abordagens novas ou pouco conhecidas "Laundry" traz sobre a África do Sul?

Ntobeko Sishi - A história da África do Sul nas artes sempre envolveu as palavras "pobreza", "opressão" e "morte". Os filmes históricos sobre apartheid são sempre tristes, sem debates sobre identidade. O que "Laundry" traz de novo é a mirada de um jovem que ainda é capaz de sonhar, e entende que a superação é uma prática essencial à dinâmica social.

Você vem da música e é estreante em longas. Como foi o trabalho no set com intérpretes de maior experiência como Siyabonga Shibe, que vive seu pai, Enoch, em "Laundry"?

Foi uma alegria atuar com Siyabonga Shibe, porque ele é uma lenda em nosso país, que trabalha como ator desde que eu era bebê. O ponto mais interessante do trabalho com ele é ver um profissional da arte com a medida certa de quando atuar e quando não, sem a necessidade de acelerar nas demandas do filme, para soar natural. Não havia ensaio entre nós no set. Chegávamos e filmávamos. Era algo vivido ali na hora.

Você já havia feito TV antes, mas sua conexão inicial com a criação artística é a música. O que vem da experiência musical para o filme e o quanto, na sua trajetória como compositor, você pode se familiarizar com a MPB, com os ritmos brasileiros?

Conheço samba, só, e te confesso que preciso visitar o Rio de Janeiro, pois sei, pelo que ouço de amigos, o quanto a cidade de vocês vai enriquecer o meu repertório. Eu canto e uso a internet para disseminar meu trabalho. O que houve de comum entre o meu personagem no filme e a minha vivência é a relação de amor pela música. Eu já tocava guitarra, mas tive que aprender trompete para dar conta do papel.

Qual é a vivência de racismo que você experimenta na África do Sul da sua geração?

Racismo é assumir que aparências justificam práticas de opressão. Onde quer que eu vou, por ter a pele escura, as pessoas encontram maneiras de me lembrar de que eu sou preto, mesmo sem eu precisar disso. A medida disso é o fato de eu ser submetido a mais testes do que as pessoas de pele clara quando passo por inspeções de segurança.

A recriação da brutalidade branca racista em "Laudry" é de causar engulhos, mas mostra que os horrores do passado não podem ser esquecidos. Como você avalia esse retrato da África do Sul que não evoca Nelson Mandela, em busca de uma radiografia onde a redenção ainda não era um horizonte?

Mandela é... e será sempre... um colosso de esperança para nós. Mas o filme toma os caminhos que trilha pelo fato de nossa nação ter esquecido do nível de agressividade a que as populações pretas foram submetidas no passado. O ano de 1968, para nós, é o marco da inequidade, da falta de igualdade. Sofremos muito para superar isso, mas ainda há perigo sob a superfície de equilíbrio em que vivemos.