Um novo Gus Van Sant que faz jus a 'Elefante'
'63 Horas de Pânico', filme mais recente do diretor que foi um dos pilares da representação queer nas telas, passa glorioso pela maratona cinéfila marroquina, com fôlego para Oscars
'63 Horas de Pânico', filme mais recente do diretor que foi um dos pilares da representação queer nas telas, passa glorioso pela maratona cinéfila marroquina, com fôlego para Oscars
Laureado em Veneza, há três meses, com um troféu honorário pelo conjunto de uma obra que fez - e faz - história na representatividade queer e na briga por espaço para narrativas indies, Gus Green Van Sant Jr. passou um tempão longe da telona, devotado a projetos serializados, ao fim da carreira internacional de "A Pé Ele Não Vai Longe" (2018). O hiato de sua presença em circuito se encerra com pompa, a julgar pelo oceano de aplausos que inunda qualquer sala de exibição na qual ele projete "63 Horas de Pânico" ("Dead Man's Wire").
A sessão no 22° Festival de Marrakech, na última sexta-feira, foi uma prova de que o diretor de 73 anos, ganhador da Palma de Ouro de Cannes (em 2003) por "Elefante", reencontrou a rota da consagração depois de um longo período de águas calmas em sua trajetória de marés criativas.
A escolha dessa produção independente rodada em apenas 20 dias em Louisville, no Kentucky (cidade natal do cineasta) como atração de abertura do evento marroquino cumpriu com a atual diretriz do evento: investir em grifes de prestígio em paralelo à triagem de talentos 0 KM. Apoiado nos acordes de seu habitual parceiro de trilhas sonoras, o compositor Danny Elfman, Van Sant presenteou o Marrocos com um thriller eletrizante sobre ética e sobre como é difícil a mídia empregar essa palavrinha com consciência. O radialista vivido por Colman
Domingo levanta esse debate ao contrariar essa máxima.
"Prestes a filmarmos, perdi o diretor originalmente escalado, que desistiu do serviço. Procurei outros dois que também não seguiram nesse projeto, até que cruzei com Gus Van Sant e senti que aquela trombada com ele era um sinal. Falei da minha ideia, mostrei o roteiro e ele só respondeu: 'conseguimos filmar logo?'. Falei que íamos falar em Louisville e ele: 'É a cidade onde eu nasci'. Ou seja... foi mesmo um sinal", disse o produtor britânico Cassian Elwes na abertura de Marrakech, representando o time artístico por trás de "63 Horas de Pânico", que tem o medalhão de excelência Al Pacino em destaque.
Elwes levantou o filme com base numa história real ocorrida em 1977, em Indiana. O caso: um homem chamado Anthony George Kiritsis entrou na corretora de valores com a qual tinha um imbróglio relativo a uma hipoteca milionária e fez um dos proprietários da empresa, Richard Hall, de refém.
Ele manteve uma espingarda de cano cerrado apontada ao pescoço do rapaz, prendendo a arma ao pescoço da vítima com um arame. Por culpa daquele fio metálico, a polícia não teve como reagir, pois o mínimo movimento em falso estouraria a cabeça de Hall. A situação pirou a imprensa no fim da década de 1970, que documentou o caso ostensivamente - com toques de sensacionalismo. Há imagens de arquivo do Kiritsis real ao fim de "63 Horas de Pânico", que adota um viés crítico ao incluir um apresentador de rádio badalado, Fred (que Colman interpreta com esplendor) para comentar aquela brutalidade no ar e ser testemunha do sequestrador - que era fã de seus programas.
Werner Herzog é listado em várias fontes como sendo o cineasta que filmaria esse enredo. Só que o mestre alemão por trás de "Fitzcarraldo" (1982) não seguiu com Elwes, deixando espaço para Van Sant assumir as rédeas. O sueco Bill Skarsgård, o palhaço assassino de "IT, A Coisa" (2017), é quem interpreta Kiritsis, apoiado nos incalculáveis recursos gestuais que tem. Dacre Montgomery vive Hall, cujo pai (e verdadeiro "vilão" da história) é encarnado por Al Pacino.
Tratado como um candidato em potencial para as estatuetas da Academia de Hollywood, "63 Horas de Pânico" é o trabalho de maior eco de Van Sant depois de "Milk - A Voz da Igualdade" (2008) e de "Paranoid Park" (2007), drama metafisico que confirmou uma guinada filosófica na travessia autoral do diretor. Ambas as produções, lançadas no fim dos anos 2000, rompiam com o passado mais folhetinesco em que Gus se encontrava quando fez "O Gênio Indomável" (1997) e "Encontrando Forrester" (2000). Trata-se de um exercício radical de linguagem, que levou adiante até "Inquietos" (2012).
"Quando eu fiz meu primeiro longa, 'Mala Noche', em 1986, gastei tudo o que ganhei dirigindo publicidade e tirando fotografias para bancar o meu sonho de filmar com liberdade.
Era uma história de amor gay, em P&B, feita por um anônimo. Deu certo: virei cineasta, fiz carreira, mas nunca criei ilusões em relação ao afeto popular. Há filmes que agradam, outros, não. Mas o que importa é poder dar o seu recado a partir deles, com o máximo de empenho e verdade", disse Van Sant num papo com o Correio da Manhã em Cannes, ao fazer um balanço de sua filmografia, em busca do propósito humanista que o guia. "Fiquei muito tempo olhando para a juventude. 'Elefante' nasceu do meu interesse pela adolescência. Agora é hora de falar das angústias dos adultos".
O 22° Festival de Marrakech segue até o dia 6 de dezembro, quando o júri presidido por Bong Joon Ho, o diretor do oscarizado "Parasita" (2019), anuncia as produções vitoriosas, na análise de 13 concorrentes. Karim Aïnouz, realizador cearense consagrado por "A Vida Invisível" (2019) e "Madame Satã" (2002), é um dos jurados. O encerramento reserva espaço para a projeção do épico "Palestina 36", de Annemarie Jacir, com Jeremy Irons.
