Pra lá de Marrakech

Nos 'finalmentes' do circuito anual dos festivais de cinema, o Marrocos põe uma leva de potenciais oscarizáveis, incluindo Kleber Mendonça Filho, numa maratona audiovisual

Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

O Festival de Marrakech encerra a temporada mundial de festivais apresentando potenciais candidatos ao Oscar de Filme Estranheiro

Nos 'finalmentes' do circuito anual dos festivais de cinema, o Marrocos põe uma leva de potenciais oscarizáveis, incluindo Kleber Mendonça Filho, numa maratona audiovisual

Marrakech abrirá suas telas para cineastas de verve autoral a partir desta noite, ao acolher um thriller de Gus Van Sant com Al Pacino, "63 Horas de Pânico" ("Dead Man's Wire"), como longa-metragem de abertura da 22ª edição de sua maratona cinéfila anual. Dela constam 82 títulos de 31 países, além de masterclass do pernambucano Kleber Mendonça Filho. Ele fala por lá neste sábado, no calor da acolhida mundial para "O Agente Secreto", que já vendeu 850 mil ingressos em nossas salas de projeção.

Divulgação - Al Pacino em '63 Horas de Pânico', de Gus Van Sant, que abre os trabalhos no festival marroquino

Para se ter uma ideia da pompa que o evento criado em 2001 promete este ano, o sul-coreano Bong Joo Ho, o oscarizado diretor de "Parasita" (Palma de Ouro de 2019), estará na presidência do júri, que tem o realizador cearense Karim Aïnouz (de "Motel Destino") como jurado. A programação está repleta de potenciais concorrentes ao Oscar de 2026 - como "Hamnet", de Chloé Zhao - fazendo parte de uma tradição histórica daquele recanto da África árabe, que sempre atiçou o imaginário de grandes estúdios planeta adentro. Ocupado de hoje até o dia 6 de dezembro com o que promete ser um dos maiores festivais de cinema de 2025, o Marrocos cede seu território para sets de filmagem desde 1897, quando emissários dos Irmãos Lumière estiveram por lá.

Até o fim da II Guerra muitos filmes estrangeiros foram rodados nos limites de suas fronteiras, especialmente na região de Ouarzazate, embora o título historicamente mais famoso a abordar sua geografia, "Casablanca" (1942), com Humphrey Bogart, seja uma produção captada em estúdios hollywoodianos. Muito do que se fazia lá, com o rótulo de "filme marroquino", era uma xerox do cinemão melodramático do Egito, sem identidade própria. Tudo mudou em 1970, quando o diretor Hamid Benani, hoje com 85 anos, filmou "Wechma" (também chamado de "Traces"), que inaugurou uma estética sintonizada com a cultura daquela pátria. Começou ali uma primavera cinematográfica que fez florescer cults de repercussão internacional como "Les Mille Et Une Mains" (1973), "El Chergui" (1976), o mítico documentário "Trances" (1981), "Amok" (1983), "Badis" (1988), "La Plage Des Enfants Perdus" (1991), "Quand Le Soleil Fait Tomber Les Moineaux" (1999) e "Marock", ímã de aplausos para a diretora Laïla Marrakchi, em Cannes, em 2005.

Divulgação - 'Calle Málaga', de Maryam Touzani, com a diva espanhola Carmen Maura, é prata da casa

As gerações que brotaram na década de 1970 deram frutos e inspiraram vozes autorais como Maryam Touzani, badalada por "O Caftan Azul", de 2022, e "Calle Málaga", com a espanhola Carmen Maura. Esse drama romântico venceu o Festival de Mar Del Plata há duas semanas, botou o Festival do Cairo no bolso, e agora se prepara para brilhar em seu lar. Ela é parte da esquadra marroquina que faz de Marrakech um evento estratégico. Tanto que há 15 filmes confeccionados lá em diferentes latitudes. A seção chamada Panorama Marrocos, por exemplo, traz candidatos a bilheterias polpudas, como "Five Eyes", de Karim Debbagh, e "Porte Bagage", de Abdelkarim El-Fassi.

Inaugurado há 24 anos numa iniciativa do Rei Mohammed VI para fomentar intercâmbios culturais, a festa marroquina do cinema se articula com festivais do Cairo, de El Gouna e do Mar Vermelho a fim de mobilizar olhares (e mercados produtores e exibidores) do norte da África e do Oriente Médio. Em 2018, Robert De Niro foi homenageado lá e ganhou uma festa com direito a cupcakes decorados com o seu rosto esculpido no glacê.

Nesta 22ª edição, haverá tributos ao diretor mexicano Guillermo Del Toro (com projeção em telona e seu "Frankenstein", já na Netflix) e à atriz americana Jodie Foster, com exibição de "Vida Privada", de Rebecca Zlotowski. A atriz marroquina Raouya e o ator egípcio Hussein Fahmy, presidente do já citado Festival do Cairo, serão homenageados também.

Divulgação - Carole Bouquet no elenco de 'Behind The Palm Trees', um dos concorrentes à Estrela de Ouro de 2025

A competição oficial que Bong Joon Ho e Karim vão julgar - cujo troféu é a Estrela de Ouro - conta com 13 competidores de peso. Atrizes famosas como Jenna Ortega (a Wandinha da Netflix) e Anya Taylor-Joy serão juradas lá também, assim como as cineastas Julia Ducounau e Celine Song, o diretor Hakim Belabbes e o ator Payman Maadi. Um dos destaques da disputa é "Paraíso Prometido" ("Promised Sky", Tunísia), de Erige Sehiri, projetado no Festival do Rio, há um mês. Há uma forte expectativa também em torno de "Behind The Palm Trees", por Meryem Benm'Barek, que tem a francesa Carole Bouquet (coqueluche do James Bond Roger Moore em "007 - Somente Para Seus Olhos") no elenco.

Divulgação - O tunisiano 'Paraíso Prometido' é outro concorrente à Estrela de Ouro

O filé de Marrakech é a seção Horizontes, que apresenta 19 filmes contemporâneos (muitos deles cotados para as estatuetas douradas de Hollywood) que traçam um panorama do cinema mundial. Por lá vão estar medalhões como Claire Denis ("A Cerca"), Ildikó Enyedi ("A Amiga Silenciosa"), Jim Jarmusch (com o ganhador do Leão de Ouro "Pai Mãe Irmã Irmão"), Richard Linklater ("Nouvelle Vague"), Park Chan-wook ("No Other Choice") e Jafar Panahi, que exibe o ganhador da Palma de Ouro, "Foi Apenas Um Acidente".

Na seção 11° Continente, dedicada a autoralidades planetárias, entra em campo a argentina Lucrecia Martel com o ensaio documental "Nuestra Tierra", sobre o assassinato do líder indígena Javier Chocobar. Ao lado dela está o galego Oliver Laxe, com "Sirât", que representa a Espanha na caça às estatuetas da Academia de Hollywood.

O encerramento será no dia 6, com a projeção do épico "Palestina 36", de Annemarie Jacir. Seu enredo se passa em 1936 e Jeremy Irons é um dos astros em seu elenco, que traz ainda Hiam Abbas. Mais famosa estrela palestina, ela deu uma recente masterclass no Festival do Cairo para falar de destrezas estéticas em prol de embates éticos na fricção entre a tela grande e os fronts bélicos. Promete repetir sua militância em Marrakech. Amparado no talento de Hiam e de Irons, o filme de Annemarie Jacir mostra que, na segunda metade dos anos 1930, vilarejos por toda a Palestina se insurgem contra o domínio colonial britânico. Na ocasião, Yusuf (Karim Daouad Anaya), que tenta construir sua vida para além dessa crescente agitação, se vê dividido entre sua casa na região rural e a inquietude de Jerusalém. Mas a História é implacável. Com o aumento do número de imigrantes judeus fugindo do antissemitismo na Europa e a população palestina se unindo na maior e mais longa revolta contra os 30 anos desse domínio colonial, tudo parece se encaminhar em direção a um conflito inevitável, em um momento decisivo para o Império Britânico e o futuro de toda a região.

Esse é o tipo de painel geográfico que injeta nitroglicerina política - e também poética - no Festival de Marrakech, que almeja, uma vez mais, provar que sua grade de filmes é a maior diversão.