Gaza: de sinônimo de conflito a veio para a liberdade
Festivais no Cairo e em Marrakech celebram a produção audiovisual da Palestina, que ganha espaço nas páginas da mítica revista 'Cahiers du Cinéma' enquanto se impõe para o Oscar
Festivais no Cairo e em Marrakech celebram a produção audiovisual da Palestina, que ganha espaço nas páginas da mítica revista 'Cahiers du Cinéma' enquanto se impõe para o Oscar
A pergunta que inspira a capa da edição de novembro da mística revista "Cahiers du Cinéma", relativa aos conflitos em Gaza - "E agora, o que faz o audiovisual?" - ganhou mais pertinência após o pedido feito na última terça-feira pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu: que o Hamas seja expulso da região. Essa demanda foi apresentada depois de o Conselho de Segurança da ONU endossar o plano do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para acabar com a guerra que oferece anistia ao grupo militante. A tensão só aumenta por lá, frente a uma taxa de mortos assombrosa.
A comunidade cinematográfica internacional reage a essa tragédia com apoio e endosso a filmes como "A Voz de Hind Rajab", da tunisiana Kaouther Ben Hania. Ela encerra o Festival do Cairo deste ano, a recriar a luta de uma garotinha, apanhada no fogo cruzado em solo palestino, para sobreviver. A menininha não teve êxito em seu combate pessoal. Já suas palavras - registradas numa troca telefônica com voluntários de uma central de assistência às vítimas do conflito no Oriente Médio, em 2024 - hoje, ganham o mundo, numa peleja póstuma dessa criança, que vira um mártir. O longa levou o Grande Prêmio do Júri em Veneza e a láurea de Júri Popular em San Sebastián. Joaquin Phoenix é um de seus apoiadores.
Entre os 14 concorrentes à Pirâmide de Ouro deste ano destacou-se "Era Uma Vez Em Gaza" ("Once Upon a Time In Gaza"), de Tarzan & Arab Nasser. A seção Un Certain Regard do Festival de Cannes deste ano rendeu-se a essa tensa narrativa ambientada na faixa mais quente (em termos de violência) hoje na Terra, e deu a ela a láurea de Melhor Realização. Não por acaso ela ocupa espaço nobre na "Cahiers", periódico que, desde 1951, ostenta status de Bíblia para a cinefilia.
O enredo dos irmãos Nasser se passa em 2007, quando Yahya, um jovem estudante, faz amizade com Osama, um carismático e generoso dono de restaurante. Juntos, eles passam a vender drogas em meio as entregas de sanduíches de falafel, mas logo se veem obrigados a lidar com um policial corrupto e seu ego inflado. Uma frase... "Palestina, tudo vai passar!", escrita num trecho climático do longa gerou uma ovação na plateia egípcia.
"Muitos filmes usam o 'era uma vez...' num sentido fabular, de conto de fadas, mas nós usamos como Sergio Leone fez em 'Era Uma Vez... No Oeste', para fazer um registro épico", disse Tarzan ao Correio da Manhã, no Cairo.
Na maratona cinéfila do Egito nasceu, também na competição oficial, um .doc que celebra a esperança da Palestina por meio da atividade circense: "One More Show". A realizadora egípcia Mai Saad uniu forças com o diretor de fotografia e cineasta palestino Ahmed Al Danaf para criar um estudo sobre os aspectos analgésicos da arte em tempos de guerra. Sua investigação se passa em meio à devastação do genocídio perpetrado por Israel em Gaza, onde um grupo de artistas circenses se recusa a deixar o desespero tomar conta do palco, apelando para técnicas de palhaçaria. Vemos a trupe The Free Gaza — formada por Youssef, Batout, Ismail, Mohamed e Just — depois de serem deslocados de um extremo norte para o sul da cidade, enquanto transformam sua arte num ato de resistência e resiliência e esperança.
"O Free Gaza trabalha com quase nada, mas eles tinham registros de vozes e de imagens das pessoas que assistem a seus espetáculos, o que foi crucial para o desenho de som do nosso filme", disse Mai ao Correio da Manhã.
Consagrado mundialmente pela obra de Elia Suleiman ("Intervenção Divina"), o cinema feito pela Palestina, inventariado pela "Cahiers", ganhou um Oscar este ano, com "Sem Chão" ("No Other Land"), que pode ser visto na Amazon Prime. Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal e Rachel Szor respondem pela direção desse exercício de não ficção, coroado com a estatueta de Melhor Documentário.
Nele, um ativista palestino filma sua comunidade sendo destruída pela ocupação de Israel. No processo, constrói uma improvável aliança com um jornalista israelense que quer se juntar à sua luta. Dessa aliança, surge um tocante ensaio documental.
Exibido no Festival de Toronto e na Mostra de São Paulo, "Palestina 36", de Annemarie Jacir, integra o rol de títulos analisados pela reportagem da "Cahiers", com a ressalva celebrativa de que se trata do filme que vai representar aquela nação na corrida pelo Oscar de 2026. No dia 6 de dezembro, esse épico vai encerrar o Festival de Marrakech, no Marrocos. Sua trama se passa em 1936 e Jeremy Irons é um dos astros em seu elenco, que traz ainda Hiam Abbas. Mais famosa estrela palestina, ela deu uma masterclass no Cairo para falar de destrezas estéticas em prol de embates éticos na fricção entre a tela grande e os fronts bélicos.
Amparado no talento de Hiam, o filme de Annemarie Jacir mostra que, na segunda metade dos anos 1930, vilarejos por toda a Palestina se insurgem contra o domínio colonial britânico. Na ocasião, Yusuf (Karim Daouad Anaya), que tenta construir sua vida para além dessa crescente agitação, se vê dividido entre sua casa na região rural e a inquietude de Jerusalém. Mas a História é implacável. Com o aumento do número de imigrantes judeus fugindo do antissemitismo na Europa e a população palestina se unindo na maior e mais longa revolta contra os 30 anos desse domínio colonial, tudo parece se encaminhar em direção a um conflito inevitável, em um momento decisivo para o Império Britânico e o futuro de toda a região.
Em outubro, a Mostra de São Paulo trouxe ao Brasil outro dos objetos de debate da "Cahiers": "Com Hasan em Gaza" ("Ma' Hasan Fi Ghazza"), de Kamal Aljafari. Indicada ao Leopardo de Ouro de Locarno, essa triagem de vivências deixou o festival suíço com o prêmio Europa Labels.
Nele, três fitas MiniDV que registram a vida em Gaza em 2001 foram redescobertas. Essas imagens são o testemunho de um lugar e de um tempo que já não existem. O que começou como a busca por um ex-companheiro de prisão de 1989 — um homem perdido no tempo e na guerra — levou a uma viagem inesperada de carro, do norte ao sul de Gaza, ao lado de Hasan, um guia local cujo destino permanece desconhecido. À medida que a câmera percorre as ruas e paisagens, ela capta vislumbres da vida cotidiana - fragmentos de uma realidade agora irreversivelmente transformada. "Com Hasan em Gaza" converte esse material esquecido em uma reflexão cinematográfica sobre memória, perda e a passagem do tempo, evocando uma Gaza do passado e vidas que talvez jamais possam ser reencontradas.
Cabe ao cinema assegurar a elas e à bravura palestina um lugar no imaginário global, como se vê em "Yalla Parkour", de Areeb Zuaiter, sensação da última Berlinale. Sua diretora visitou Gaza pela primeira vez quando tinha quatro anos, momento em que teve seu primeiro contato com o mar. Essa lembrança, junto com o sorriso de sua mãe, tornou-se uma memória persistente em sua vida.
A nostalgia por sua terra natal ressurge quando ela se depara com um vídeo de jovens praticando parkour nas praias de Gaza, no qual a felicidade deles contrasta com o barulho distante das explosões. Na tentativa de se reconectar com o passado, Areeb entra em contato com essa equipe de parkour e se aproxima de um deles, Ahmed. Eles percorrem o que sobrou de uma metrópole devastada por bombas e, à medida que esse relacionamento se aprofunda, Ahmed revela a realidade da vida na região, transformando a curiosidade inicial da cineasta em uma profunda tomada de consciência sobre as dificuldades que a Palestina enfrenta... e que choca cada um de nós. O cinema se choca dia a dia, porém, reage.