Outros lados da América na terra dos faraós

Dramas existenciais com estrelas famintas pelo Oscar, um curta pop e um thriller nas raias do assombro levam uma safra sólida de produções dos EUA ao maior festival do Egito

Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Reconstrução tem Josh O'Connor, coqueluche hollywoodiana, a frente de seu elenco

Dramas existenciais com estrelas famintas pelo Oscar, um curta pop e um thriller nas raias do assombro levam uma safra sólida de produções dos EUA ao maior festival do Egito

Apesar da cruzada contra Donald Trump que serve de tônica à cada debate e à cada conversa de corredor no 46º Festival do Cairo, há espaço para o cinema dos Estados Unidos no evento egípcio, mas, em respeito ao crivo curatorial do diretor artístico Mohamed Tarek, só recebem o visto - ou seja, livre passagem por suas telas - as expressões autocríticas da Américas. A mais badalada delas, do início da maratona cinéfila do Egito até agora, é o belo "Reconstrução" ("Rebuilding"), do realizador Max Walker-Silverman.

Passado num cenário rural, no Colorado natal de seu diretor, esse drama ergue suas vigas a partir do ator Josh O'Connor, a nova coqueluche do cinema independente, que tanto brilhou para Alba Rohrwacher ("La Chimera") como no (pavoroso) "The Mastermind", de Kelly Reichardt, hoje em cartaz. É ele quem vai estrelar o novo Spielberg, previsto para 2026, que trata de contatos imediatos com ETs. De palavreado ralo e raro, mas de múltiplas expressões que espelham um permanente tumulto interno (e até vergonha), O'Connor é Dusty, um cowboy que carrega um fardo de perda. Seu rancho foi destruído por um incêndio devastador e tudo o que os seus parentes construíram e adquiriram foi reduzido a cinzas. Enviado para uma zona de trailers improvisado num acampamento da FEMA (Agência Federal de Gestão de Emergências), esse tímido anti-herói encontra uma nova comunidade para recomeçar e reconstruir a sua vida e sua história, tentando manter ligação com a filha, ainda criança, que vive com à ex-mulher na região. Uma trilha sonora de rasgar o peito, pautada pela guitarra acústica de Jake Xerxes Fussell e James Elkington, ampara a angústia que esse filme filtra, num exercício comovente de trasncendência.

Egresso dos festivais de Tribeca e de Locarno, o drama sobre populações sino-americanas chamado "A Mãe Obsessiva"

("Rosemead") repetiu na pátria dos faraós o efeito encantatório que teve noutras nações, colocando plateias do mundo todo de joelhos, a reverenciar a estonteante atuação de Lucy Liu. Impõe-se como um ímã de prêmios agora que a temporada do Oscar de 2026 está às vésperas de começar. No fim de semana passado, a produção fez do Cairo um trampolim para mergulhar no afeto da Academia de Hollywood. O roteiro (muito bem) filmado por Eric Lin segue os rastros de Irene (Liu), imigrante chinesa com doença terminal que descobre a perturbadora fixação de seu filho adolescente, Joe (Lawrence Shou), por tiroteios em massa. À medida que sua saúde se deteriora, ela toma medidas cada vez mais desesperadas - e moralmente complexas - para protegê-lo e enfrentar as trevas que o atraem.

A safra estadunidense do Cairo bate ponto também em veredas competitivas, na disputa de curtas, numa coprodução com a França chamada "Wassupkaylee", de Pepi Ginsberg. O enredo retrata perrengues de uma jovem influencer.

Numa outra - e sombria - latitude da praia de longas, a seção Midnight, voltada para thrillers com o Capeta nos fotogramas, o cinema inde norte-americano se sai bem com "Hellcat", de Brock Bodell. Nele, somos levados a um terreno baldio no meio do nada, no meio da noite, e vemos Lena (papel de Dakota Gorman) acordar. Presa dentro de um trailer em movimento, ela está tonta e não sabe como chegou lá nem como conseguiu aquele ferimento misterioso. A voz de um estranho chamado Clive (Todd Terry) diz à moça que ela foi infectada e que ele a levará para ver um especialista chamado Dr. Janekowski, que poderá ajudá-la — desde que ela fique calma e dentro do trailer. É claro que Lena não confia nesse homem e tenta fugir, mas ele faz o possível para que ela entenda que está ali para ajudá-la. Clive pode parecer louco, mas não é um monstro. Ele conversa com Lena sobre sua vida, sobre as escolhas que fez e suas crenças no desconhecido.

O Festival do Cairo chega ao fim nesta sexta-feira.