Nas asas de indignadas borboletas

Documentário da peruana Tatiana Fuentes Sadowski, premiado na Berlinale, leva à maratona cinematográfica do Egito o massacre dos povos indígenas pela indústria da borracha

Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

'Memória das Borboletas' ganhou o Prêmio da Crítica na Berlinale por sua ousadia de linguagem

Não é todo dia que o Brasil abre um dos mais ilustres festivais de cinema do mundo, como foi o caso da projeção de "O Último Azul", do pernambucano Gabriel Mascaro, no abre-alas da 46ª edição da maratona audiovisual do Cairo, na quarta-feira. Um toque do realismo mágico de DNA latino se espalhou pela terra dos faraós, que terá mais um gostinho das estéticas autorais sul-americanas neste fim de semana com a projeção de um ensaio documental peruano antes projetado (e premiado) na Berlinale, na Alemanha: "A Memória Das Borboletas" ("La Memoria de las Mariposas"), de Tatiana Fuentes Sadowski.

Um merecido Prêmio da Crítica e a menção honrosa do júri oficial de .docs do Festival de Berlim, recebidos em solo germânico, fevereiro passado, ampliou o futuro desta produção com forma experimental e espírito de denúncia. Exibido no DocLisboa há um mês, "A Memória das Borboletas" foi um dos destaques da Mostra de São Paulo de 2025. Numa alquimia de inquietudes, sua produtora, Isabel Madueño Medina, e sua realizadora, antes conhecida por "La Huella" (2012), apelam para a palavra "constância" para traduzir o requisito de quem sonha viver profissionalmente de cinema em sua pátria, Só com empenhos constantes, na busca por apoios e fontes de materiais iconográficos ou audiovisuais planeta afora, elas foram capazes de tirar o longa-metragem - uma das mais comentadas da história recente das artes visuais peruanas - do papel.

Divulgação - A produtora Isabel Madueno Medina e a diretora Tatiana Fuentes Sadowski

"Ainda sofremos na demora dos fundos e lidamos com um estado que quer censurar temas, para evitar assuntos espinhosos", explica Isabel Madueño Medina, que cuidou da produção.

A Berlinale, em sua 75ª edição, reconheceu os esforços de Isabel e de Tatiana, abraçando esse experimento documental como um dos achados da seção Fórum. É lá que nascem os filmes "inclassificáveis" na fricção sinestésica de texturas e sons. A expressão narrativa delas chega agora ao Cairo na mostra Panorama Internacional e carrega uma bandeira política - na forma de processar registros em Super-8 - ao abordar a violência histórica contra os povos indígenas peruanos. Pode-se dizer que o continente latino todo está refletido na forma como Tatiana processa símbolos ligados à extração da borracha na América do Sul.

"Os fantasmas que povoam o filme não são marcas da borracha, mas, sim, das elites que nos exploraram", explicou Tatiana ao Correio da Manhã. "Algumas instituições nos cederam seus acervos de memória para a construção da narrativa, que queremos levar para as populações que integram o circuito de exploração que mostramos".

A diretora teve sua atenção capturada por uma foto antiga de dois homens indígenas levados a Londres para serem "civilizados" por volta da virada do século XX. Seus nomes eram conhecidos - Omarino e Aredomi - mas pouco ou quase nada se sabia sobre eles. Por isso, Tatiana sentiu-se compelida a se aprofundar no passado da dupla - e de sua pátria. O que faz em "A Memória das Borboletas" é desconstruir a história oficial do comércio extrativista e colonial borracheiro no fim do século XIX e início do século XX.

"Uma fotografia é um arquivo e todo arquivo é uma porta aberta para uma investigação, que não precisa de objetividade, mas se comporta como evidência", diz Tatiana, que rodou o longa com um orçamento estimado em US$ 180 mil. "Todo arquivo é um espectro".

Ela compartilha seus achados sobre Omarino e Aredomi com os descendentes deles e filma suas intervenções. O êxito de "A Memória das Borboletas" em festivais na Europa - que atraiu a curadoria brasileira da Mostra - demarca a força documental peruana no planisfério cinéfilo. "O cinema da América Latina vive quando gera debate", disse Isabel.

O 46º Festival do Cairo incluiu outro achado hispano-americano da Berlinale em seu Panorama: o argentino "A Mensageira" ("El Mensaje"), de Iván Fund. Um toque de fantasia sobrenatural assegura encantamento a esse road movie em preto e branco. O Prêmio do Júri que recebeu em telas berlinenses comprovou o vigor de sua realização. Na direção Fund apela para a linguagem visual em P&B para criar uma narrativa de tintas fantásticas sobre uma menina com o dom de falar com animais mortos. O clima de sua vida não é de assombro, apesar do que a premissa sugere, mas, sim, de doçura.