CRÍTICA / FILME / O AGENTE SECRETO: Estado de paranoia

Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Com atuação premiada em Cannes, Wagner Moura, o protagonista de 'O Agente Secreto', vem sendo apontado como potencial candidato ao Oscar de Melhor Ator na premiação do próximo ano


Quatro curtas-metragens de Kleber Mendonça Filho estreiam na grade da MUBI, plataforma digital dedicada a grifes autorais, nesta quinta: “Vinil Verde” (2004), “Eletrodoméstica” (2005), “Noite de Sexta, Manhã de Sábado” (2007) e “Recife Frio” (2009). Estão lá todos os elementos que aquecem “O Agente Secreto”, o novo e mais eletrizante longa do diretor, um artista visal de Pernambuco que militou na crítica e na reportagem nos anos 1990 e 2000, a partir de uma prosa irônica, mas sempre cinéfila. A cinefilia desenha o diálogo que cada pílula supracitada - hoje na www.mubi.com - trava com gêneros dramatúrgicos, da crônica social em painel à la Robert Altman ao documentário falso (mockumentary) com ares de “filme-catástrofe”.

Há em todos a tal ironia de sua escrita de resenhista e há obsessões temáticas recorrentes: o abandono de espaços urbanos à sombra da gentrificação; falhas de comunicabilidade no eixo familiar; e intolerâncias de classes, muitas vezes algemadas ao racismo. A soma desses assuntos pavimenta o trabalho que deu a KMF o troféu de Melhor Direção em Cannes, onde ganhou o Prêmio da Crítica também, além de uma laúea da Associação Exibidora de Filmes de Arte e Ensaio, candidatando-se, no ato, a uma consagração planetária - merecida. É um trabalho de invenção pura.

Na sequência em que Seu Alexandre, projecionista de vasta experiência, pergunta ao genro há muito sumido, interpretado pelo colosso chamado Wagner Moura, “depois que a minha filha morreu, você raparigou?”, a tal dificuldade de troca franca entre integrantes de uma família - já apontada no seminal “O Som Ao Redor”, o primeiro longa de Kleber - se faz pontuar. Há uma pontuação gradual dos ranços classistas que ele denuncia na maneira como um empresário de caráter microcoscópico, Ghirotti (Luciano Chirolli), trata os assassinos de aluguel Bobbi (Gabriel Leone) e Augusto (Roney Vilela, sublime em cena). O já assinalado interesse do diretor por um Recife que descasca e desbote diante do descuido do governo com a arquitetura local - e com o povo que nela habita - é perceptível na andança de Marcelo (nome inicial do personagem de Wagner) no centro da cidade e em sua incursão num carnaval que ferve a frevo, no Brasil de 1977. E o Brasil de Ernesto Geisel (1907-1996)

Não se fala nele, nem se fala explicitamente na palavra “ditadura”, mas o retrato do milico está nas paredes por onde Marcelo desfila com esse falso nome, com uma identidade falsa, disfarçando-se para se “proteger do Brasil”, qual explica a operativa de uma célula de resistência vivida por uma Maria Fernanda Cândido em mood Monica Vitti. Sua fala expõe as chagas do regime vigente à época. Um regime de farda verde oliva que fabricava desaparecimentos para se livrar de seus desafetos.

Crocante ao longo de toda a extensão de seus 158 minutos, “O Agente Secreto” revive o jugo ditatorial que oprimiu este país a partir de 1964 (até 1985, com espasmos de retomada após o Golpe de 2016 e a eleição de Jair Bolonaro) sob a ótica da paranoia decorrente do controle da nação pelas Forças Armadas. Existe um timbre paranoico por trás de cada sequência, numa operação de imprimir tons persecutórios num âmbito sinestésico.

Ao operar nessa toada, “O Agente Secreto” se soma ao precioso “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, que nos deu o Oscar, e aplaca uma carência histórica do cinema brasileiro em relação a filmes de ficção que narrem as brutalidades estatais cometidas nos 21 anos em que oficiais militares tomaram o governo e suspenderam a democracia. Os argentinos viveram situação similar, igualmente sangrenta, e a exorcizaram, no cinema, com “A História Oficial”, de 1985, e “Argentina, 1985”, de 2022, com direito a outros sucessos no caminho. O Brasil reagiu cinematograficamente ao avanço dos comandantes fardados no ato do golpe com “O Desafio” (1965), de Paulo Cézar Saraceni (1933-2012). Uma nova reação de peso brotaria das telas em 1982, com direito a uma indicação ao Urso de Ouro de Berlim e 1,3 milhão de ingressos vendidos em circuito: “Pra Frente, Brasil”, de Roberto Farias (1932-2018). Cerca de 15 anos depois, Bruno Barreto tomou as telas de assalto com “O Que É Isso, Companheiro?”, que também concorreu na Berlinale, falando do sequestro do embaixador americano (vivido por Alan Arkin) como rechaço à governança militar. Fora isso, desde os anos 1980, a realizadora Lucia Murat fez dos Anos de Chumbo o assunto de seus dramas, incluindo “Quase 2 Irmãos” (2005) e o recente “O Mensageiro” (2023), e já citado (e elogiado) Wagner Moura arriscou-se (muito bem) na realização relembrando o período em “Marighella” (2019).

No documentário, “Cabra Marcada Para Morrer”, de Eduardo Coutinho (1933-2014), que é um farol para KMF, e toda a obra de Silvio Da-Rin (“Hécules 56”) expuseram toda a violência da ditadura em um dos maiores territórios da América do Sul. Apesar desse sortimento, faltava uma catarse... sobretudo de retumbância popular, que fosse capaz de reverberar pelo mundo.

Walter goleou essa nossa angústia. KMF vem agora arrematar a partida, num sinal de que o risco de agentes militares se arvorarem a tomar o Brasil de novo pode sempre rondar os ares da pátria. Ele o faz em forma de um espetáculo cheio de alusões ao cinemão político americano dos anos 1970. Tanto que o miolo de “O Agente Secreto” é recheado com tomadas de perseguição que evocam a caça de Gene Jackman a Fernando Rey em “Operação França” (1971). Evoca-se “Três Dias Do Condor” (1975) no uso de um arquivo como cenário. Tais referências temperam o filme de KMF, mas sua brasilidade é a especiaria central, assegurada pela atuação em estado de graça de Wagner, que ganhou o Prêmio de Melhor Ator em Cannes por sua maneira de alquebrar-se, remontar-se e “desmorrer”.

Que filme notável!