Roberta Ellen Canuto: 'A memória é catalizadorado novo'
Diretora de um documentário que é um mimo para a arte da recordação ("O Nascimento de H. Teixeira", sobre a bamba das Letras), Roberta Ellen Canuto fez (e faz) de um tudo para que a divulgação científica, jornalística e afetiva do cinema brasileira preserve seus titãs. Escreveu um amarrado bonitão com as ideias, as cosmogonias e as provocações do realizador de "O Bandido da Luz Vermelha" (1968), chamado "Encontros: Rogerio Sganzerla" (lançado pela Azougue Editorial).
Hoje, em paralelo a seu trabalho na distribuidora Riofilme, ela disseca nosso legado audiovisual com "Alberto Cavalcanti - Homem Cinema", estudo sobre o realizador dos cults "Simão, o Caolho" (1952) e "Mulher de Verdade" (1954), nascido em 1897, morto em 1982, mas imortalizado com filmes que dirigiu Europa adentro.
Seu livro é uma Passárgada para memorialistas e um deleite para pesquisa. Na URL https://sl1nk.com/lZXgt é possível encomendá-lo. Sua escrita é tão saborosa quanto suas análises dialéticas. Ela joga holofotes sobre um criador cuja relevância para a consolidação do cinema como uma "artindústria" (palavra do próprio Cavalcanti) nunca foi reconhecida com a atenção devida. Há grandes trabalhos na filmografia dele, mas raramente eles ganham telas. Com "Canto do Mar", ele concorreu no Festival de Cannes, em 1954. Antes, com "Nas Garras da Fatalidade", disputou láureas em Veneza, em 1947.
Nascido no Rio de Janeiro, no bairro de Botafogo, Cavalcanti construiu sua trajetória na França, entre a década de 1920 e 1930, e depois na Inglaterra, entre os anos 1930 e 1950, tendo filmado "O Sr. Puntilla E Seu Criado Matti" (1960) em terras germânicas. Durante a pesquisa, Roberta teve acesso a uma documentação inédita que estava em sua residência quando faleceu, em 1982, em Montmartre, Paris. Essa documentação conta com os originais do sonhado livro de memórias que o cineasta acalentou ao longo da vida, além de sua certidão de óbito, cartas, cartões, roteiros de filmes, programas de peças teatrais que ele dirigiu na Europa e em Israel. A conversa a seguir com o Correio da Manhã celebra os achados que a jornalista fez ao estudar a obra do diretor, que foi determinante para a depuração (moderna) das estéticas documentais em sua incursão no Reino Unido (participando da criação de narrativas como "Night Mail", de 1936). Ele ainda escreveu o seminal "Filme e Realidade", nos anos 1950.
Depois da sua imersão no Cinema Marginal na obra de Rogério Sganzerla, você se lança sobre o diretor que engatou o Brasil com as telas do mundo. O que você levou dos dispositivos da sua pesquisa sobre o diretor de "O Bandido da Luz Vermelha" para o Brasil cosmopolita que Alberto Cavalcanti criou?
Roberta Ellen Canuto - Eu sempre me senti atraída por personagens outsiders. Não que o Cavalcanti seja um, no sentido clássico do termo, mas muito me intrigava o fato de ele ser tão reconhecido mundialmente, como um dos fundadores da linguagem cinematográfica... com longos verbetes nas enciclopédias internacionais, como na do Georges Sadoul; com direito a um acervo robusto no BFI e na Cinemateca Francesa... e ser completamente ignorado em sua terra natal. Essa percepção de alguma forma cria uma conexão com o Sganzerla: a "marginalidade" dentro do Brasil, escapando ao que foi sacralizado no altar do cinema brasileiro. Além disso, quando comecei a conhecer a obra do Cavalcanti, fiquei completamente fascinada por seu pioneirismo, pela forma como ele viveu o cinema visceralmente, criando técnicas pioneiras em todas as funções que exerceu: diretor de arte, cenógrafo, montador, roteirista e diretor. Além disso, ele foi um artista completo. Dirigiu até peças teatrais pelo mundo. Cavalcanti tem feitos extraordinários. Ele foi, por exemplo, o único parceiro que trabalhou ao lado do Brecht na adaptação de um dos seus textos para o cinema. Foi um homem moderno em plenitude, quando chegou à Paris do avant-garde, teve um papel fundamental para aquela geração que se formou ali, determinante para a história do cinema e da arte no mundo. O mesmo aconteceu na Inglaterra, junto ao (John) Grierson, Cavalcanti foi essencial para o futuro do documentário, como uma linguagem livre, poética e rica de sentidos.
De que maneira o livro mapeia a gênese artística de Cavalcanti e o legado que ele deixou?
A princípio, minha pesquisa focava na relação entre o cinema de Cavalcanti realizado na Inglaterra, junto à General Post Office, e o neorrealismo italiano. Minha tese é de que Cavalcanti antecipou, junto à equipe do Grierson, muito do que se atribuiu historicamente como sendo uma descoberta, um pioneirismo estético e temático do cinema neorrealista pós-guerra na Itália. A fusão entre documentário e ficção; a valorização de personagens comuns, sobretudo do trabalhador; o traço poético no documental; iluminação natural; uso de não atores; filmagem em externas, entre outras características. Depois, eu me deparei, ao longo da pesquisa com toda uma documentação inédita, entre ela, os originais das memórias que o Cavalcanti quis publicar ao longo da vida, onde narra toda a sua trajetória no cinema. Decidi então incorporar isso à minha tese. Então, o livro traz reunida uma longa pesquisa sobre todo o percurso do Cavalcanti como realizador, além de se aprofundar em aspectos originais sobre sua obra. No Brasil, a bibliografia sobre ele é bastante escassa, acho que esse livro preenche uma lacuna importante.
Os filmes de Cavalcanti têm fortuna crítica, mas raramente passam. Que sugestões você daria para quem quer conhecer seu cinema?
Quando fiz minha pesquisa, tive de recorrer a uma rede de amigos e admiradores de Cavalcanti, que me cederam cópias em DVD de seus filmes. Duas pessoas foram fundamentais nesse processo. Uma delas foi o Claudio Valentinetti, autor do livro "Alberto Cavalcanti", escrito com o Lorenzo Pellizzari e publicado através de uma parceria entre o Instituto Lina Bo Bardi e o Festival de Cinema de Locarno. O Valentinetti foi maravilhoso, copiou para mim todos os filmes do Cavalcanti de seu acervo pessoal, e em uma operação entre amigos e familiares, com a ajuda de meu irmão que mora em Brasília, onde ele reside, esses DVDs me foram enviados. A outra pessoa determinante para que eu acessasse esses filmes foi o José Américo Ribeiro, amigo querido, que foi professor de cinema na UFMG, e que também me cedeu cópias de filmes que ele adquiriu em DVD, em Londres. A boa notícia hoje é que os filmes do Cavalcanti, da fase francesa e brasileira, estão sendo restaurados, e, em breve, devem estar acessíveis ao público. Ainda não temos previsão sobre a sua obra na Inglaterra, mas estou otimista em relação a isso. Recentemente, fui convidada para integrar uma ação coletiva, liderada pela Cinemateca Brasileira, que têm como objetivo reunir e recuperar todo o acervo e obra do Cavalcanti, para que posteriormente seja disponibilizada ao público. As restaurações de seus filmes no Brasil são parte dessa grande iniciativa. Mas, no momento, o que está acessível é parte de sua obra que está disponibilizada na web.
Sua obra acadêmica e seus escritos se destacam sobretudo pelos préstimos à memória, no empenho de fazer preservar o que se fala, mas pouco se vê. Que ferramentas teóricas embasam essa sua arqueologia de acalanto?
É bonita a sua definição de arqueologia do acalanto, é difícil nomear o que me move, e achei interessante essa colocação. Acredito que a memória é catalizadora do novo. Quando mergulhei na obra do Rogério, o que mais me interessava era trazer à luz vestígios de presente e futuro naquele passado, revelando a força daquele cinema na produção contemporânea, brasileira e internacional. Sganzerla e Cavalcanti são faróis, são artistas que não pertencem só a um tempo e um espaço, eles transcendem essas bordas e iluminam o porvir. Cada um a seu modo. Além dessa motivação afetiva e analítica, quis também ser útil à preservação desses legados, desses acervos. No caso do Sganzerla, eu reuni no livro publicado pela Azougue, entrevistas que estavam literalmente se decompondo em pastas na Cinemateca do MAM, que a partir do livro, foram preservadas para a posteridade.
No caso do Cavalcanti, você teve acesso a um acervo precioso que estava sob a guarda do jornalista Sergio Caldieri, outro parceiro fundamenta para sua pesquisa. O que encontrou ali?
Tive acesso a um acervo de 300 quilos de documentos do Cavalcanti, que estão em sua casa em Niterói. Esse acervo reúne documentos pessoais, roteiros, originais do livro de memórias, fotos, cartões de Natal e dezenas de papeis que contam a história do Cavalcanti, e também a história do cinema no século XX. Então, a partir dessa documentação, reconduzi minha pesquisa, apontando para um caminho indissociável: a encruzilhada poética entre a obra e a vida de Cavalcanti, que no fundo, são um único percurso. E, de novo, tive a sensação e a motivação de que o meu trabalho, de alguma forma, contribuiria para a preservação do legado desse artista imenso. Se eu pensar bem, essa sensação da arte como homenagem a faróis da nossa arte, pensamento e cultura é também o coração, a pulsação por trás da realização do filme que fiz sobre a Heloísa Teixeira.
Sua carreira de autora divide lugar com seu trabalho na Riofilme. Que missão é a sua hoje na distribuidora?
São trabalhos que, embora pertencentes ao mesmo universo, o cinema brasileiro, são bem diversos. Na RioFilme, tenho uma função estratégica que é cuidar da comunicação. Um trabalho desafiador no sentido de dar conta do tamanho e da potência que a RioFilme representa hoje no ecossistema audiovisual brasileiro, e também, do Rio como destino de telas no mundo.