Mostra de SP: Quando Saddam Hussein virou glacê

Pouco visto em festivais e em circuito, o cinema do Iraque acumula prêmios e prestígio com 'The President's Cake', premiado pelo júri popular de Cannes e talhado para chegar ao Oscar

Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

'The President's Cake' ganhou o troféu Camé d'Or e a láurea de júri popular em Cannes

 

Pouco visto em festivais e em circuito, o cinema do Iraque acumula prêmios e prestígio com 'The President's Cake', premiado pelo júri popular de Cannes e talhado para chegar ao Oscar

Do Irã todo mundo espera filme bom, como comprovou a Palma de Ouro confiada a Jafar Panahi por "Foi Apenas Um Acidente", que a Mostra de São Paulo exibe no próximo dia 27, às 18h30, na Cinemateca Brasileira. Já do Iraque... de lá ninguém sabe que tipo de curta ou longa-metragem esperar. Por conta dos conflitos contra os Estados Unidos, em especial o embate envolvendo o Kwait nos anos 1990, pouco se vê (ou se conhece) da produção audiovisual iraquiana, o que vem tornando a carreira internacional da aventura em tons dramáticos "The President's Cake" um acontecimento... com exibição no Brasil assegurada para este fim de semana.

Haverá sessões dele na maratona cinéfila paulistana nesta sexta, às 18h30, na Sala Petrobras da Cinemateca, e no sábado, às 21h15, no Multiplex Playarte Marabá. Maior achado da mostra Quinzena de Cineastas do último Festival de Cannes, essa produção despontou primeiramente como iguaria e, depois, firmou-se uma certeza de excelência. Coube a ele o cobiçado troféu Caméra d'Or, espécie de Palma para estreantes. Seu diretor, Hasan Hadi, recém-chegado ao formato dos longas-metragens, foi recompensado ainda com a láurea de júri popular da Croisette.

Venceu por uma narrativa que mistura algo do "era uma vez…" típico das fábulas com um neorrealismo de raiz. Faz lembrar "O Balão Branco" (1995), do já citado Panahi, pela sua matriz de heroína infantil, mas não se agarra a eixos etnográficos, como o cult supracitado fazia. O que vemos é uma nação imersa no medo pelos olhos de uma criança.

"Ao retratar a miséria, eu não faço um simbolismo proposital", disse Hadi ao Correio da Manhã. "Entre a fábula e o naturalismo, existe uma jornada".

Com considerável experiência no posto de montador, Hadi dirigiu antes o curta "Swimsuit", que estreou no Festival de Varsóvia de 2021. Ele cresceu no sul do Iraque e, já adulto, trabalhou em jornalismo, antes de se tornar professor adjunto no Programa de Pós-Graduação em Cinema da New York University. Recebeu o Gotham-Marcie Bloom Fellowship, o Black Family Production Prize e o Sloan Foundation Production Award. É bolsista do Sundance Lab 2022 e conquistou, a partir de Nova York, meios para filmar "The President's Cake". "É uma história que passa pelas minhas memórias de garoto", disse o realizador.

Sua protagonista é Lamia (Banin Ahmad Nayef), uma estudante de 9 anos que precisa cumprir a tarefa imposta por sua escola: preparar um bolo. Não se trata de um bolo qualquer. É um bolo de aniversário para... Saddam Hussein (1937-2006), o então líder de sua pátria. Estamos no início dos anos 1990, na era Bush (pai), e está chegando o dia 28 de abril, data em que o Iraque era obrigado (por lei) a celebrar o aniversário de seu governante, como se fosse uma festa cívica. Em meio a essa comemoração, Lamia, que é paupérrima, tem que fazer o tal doce do título (e com recheio de creme) para levar para o colégio. Se não o fizer (e bem), cairá em desgraça. O problema é que ela não tem dinheiro para os ingredientes e sua responsável, uma avó cheia de retidão (Waheed Thabet Khreibat), tampouco pode ajudá-la. Começa aí uma travessia acachapante em busca de açúcar, fermento, farinha e ovos, numa dinâmica de ação que conversa frontalmente com as cartilhas de Hollywood, apesar de o ambiente diante de nós sugerir geografias distintas das que os grandes estúdios retratam.

Lamia tem dois aliados: o amigo de escola Saeed (Sajad Mohamad Qasem) e seu galo de estimação. Carrega o bicho por onde vai e percebe que todos os aviários da região almejam se apoderar da ave. O que se vê nessa operação culinária é um microcosmos da opressão, tanto a interna (de Saddam) quanto a externa, por bombas que explodem aqui e a ali.

"É a travessia de duas crianças num ambiente de pobreza", disse o cineasta, que saiu da Croisette cercado de chances de ter seu filme entre os concorrentes ao Oscar.

Antes de seu "The President's Cake", conhecia-se o cinema iraquiano pelo trabalho de Abbas Fahdel ("Retour à Babylone" e "Homeland (Iraq Year Zero)") e por Mohamed Al-Daradji, que arrebatou a Berlinale, em 2010, com "Filho da Babilônia". Outro nome respeitado, egresso de Bagdá, foi Mohamed Shukri Jameel (1937-2025), famoso por "King Ghazi of Iraq" (1993).

"The President's Cake" volta a passar na Mostra no dia 21 de outubro, às 15h, no Reserva Cultural, e no dia 24, também às 15h, no Espaço Petrobras.