Desde o Cinema Novo, a agenda de afazeres cinematográficos de Antonio Pitanga não andava tão concorrida como se vê em 2025, nestes momentos que antecedem a estreia de "Malês", o sonho de dirigir um épico libertário que mobiliza seu coração há décadas. No Festival do Rio, que começa na quinta, imagens dele vão aparecer em "Para Vigo Me Voy!", .doc em tributo a Carlos Diegues (1940-2015). Ele participa ainda do documentário "Milton Gonçalves, Além do Espetáculo", de Luiz Antonio Pilar, no evento, cujo júri presidiu há três anos.
Há bem pouco, seu rosto foi visto no cultuado "Oeste Outra Vez", que venceu Gramado, em 2024. Na Europa, fala-se até hoje de seu desempenho nas telas de San Sebastián em "Casa de Antiguidades" (2020). Seu nome vem corrido terras, de tela em tela, à força de sua passagem recente pelo Festival Panafricain Du Cinéma Et De La Télévision De Ouagadougo, mais conhecido como Fespaco. Burkina Faso é sua sede. Pitanga brilhou lá. "Estou vindo com um pleito pela liberdade", disse o ator e diretor, na abertura do Bonito Cine Sur, em Mato Grosso do Sul.
Integrou a seleção oficial de longas-metragens dessa maratona audiovisual da África, realizada em fevereiro, quando inaugurou a carreira internacional de seu "Malês". Lançado no Festival do Rio passado, o filme marca o regresso do emblemático ator à direção, 47 anos depois de seu primeiro exercício como realizador, "Na Boca do Mundo" (1978).
"O 'Malês' esta cumprindo a sua missão, pois acho que como a gente ainda está vivendo a consagração de 'Ainda Estou Aqui' no mundo, ainda estamos aqui como Malês", disse o ator ao Correio da Manhã, quando excursionou por rodas de debate africanas.
A fala do astro de "A Idade da Terra" (1980) se refere a um episódio histórico de resistência. Com base num enredo de Manuela Dias (autora da nova versão da novela "Vale Tudo") produzido por Flávio R. Tambellini, "Malês" recria a Bahia do século XIX, em meados de 1830. Na ocasião, uma rebelião começou a ser arquitetada por africanos muçulmanos, chamados de malês. A revolta se passa no final do Ramadã, mês do calendário islâmico em que o jejum é uma forma de celebrar Alá. Após o fracasso dessa revolta, os manifestantes foram duramente punidos e a repressão contra as populações pretas no Brasil aumentou. Apesar disso, o exemplo de luta e de resistência deles marcou a História não apenas por uma aula de estratégia política, mas pelo simbolismo intelectual de um povo que combateu o açoite com boas ideias. Num elenco em estado de graça, com destaque para Camila Pitanga e Patrícia Pillar, Rodrigo de Odé explode em cena, triunfante, em várias sequências, numa atuação memorável.
"Para mim, foi tudo uma grande emoção, sobretudo quando a plateia aplaudiu de pé o filme 'Males' dizendo: 'Gratidão. Obrigado'. É uma história que eles não conheciam, como o Brasil também não conhecia. A gente traz o século 19 para poder conversar entendendo a tragédia que foi o sequestro da escravização", disse Pitanga, ao Correio, à época das filmagens.
Durante o processo, ele dividiu seu tempo na direção com seu trabalho de ator, encarnando a figura de Pacífico Licutan, um dos líderes do levante, que defendia a importância da participação de diferentes aldeias e religiões para o sucesso da revolta.
"Eu estou em um momento tão feliz da vida, de vivenciar essa oportunidade incrível de poder dialogar, através do cinema, com o levante mais importante do Brasil", diz Pitanga que contou com o bamba da edição Quito Ribeiro na montagem.
"O 'Malês' é um projeto que começou quando eu filmei 'Idade da Terra', do Glauber Rocha. Ele queria levar os baianos todos de volta para a Bahia, e me disse: 'Tá na hora de a gente voltar pra casa, Pitanga'. E com essa ideia de retornar, um dos projetos dele era produzir 'Malês'. Como o Glauber morreu, ainda ali no começo dos anos 1980, o projeto ficou adormecido até que, vendo 'Amistad', do Spielberg, eu retomei a ideia. Fiz o argumento com Orlando Sena e entreguei para a Manuela Dias escrever o roteiro. Nascemos, enfim".