Festival de San Sebastián 2025: maternidade, justiça e o cinema ibero-americano em destaque
O Festival de Cinema de San Sebastián 2025 encerra com premiações e tendências do cinema espanhol e latino-americano. Descubra os destaques, como "Belén", "Nuremberg" e o foco na maternidade, além dos filmes brasileiros e portugueses em destaque.
Existem muitas Espanhas na Espanha e cada uma tem uma expressão audiovisual (seja Pedro Almodóvar, seja Isabel Coixet, seja Carla Simón, seja “La Casa de Papel), sendo que o papel do maior festival de cinema daquela nação, o de San Sebastián, é harmonizar essas distintas formas de contar histórias (ou de experimentar formas) com imagens em movimento. Cabe a ele também criar conexões com outras filmografias, a se destacar as das Américas.
A 73ª edição dessa maratona realizada desde 1953 em solo basco vai se encerrar na noite deste sábado (ali pelas 16h do Brasil) com a projeção do tenso thriller de CEP polonês “Winter of the Crow” (com a britânica Lesley Manville num clima de 007) e com uma sucessão de premiações, das quais a mais importante é a corrida pela Concha de Ouro. Por dois anos seguidos, a própria Península Ibérica venceu por lá: em 2023, com “O Corno do Centeio”, de Jaione Camborda, e em 2024, com “Tardes de Soledad”, de Albert Serra.
Apesar da forte ação da prata da casa na seleção deste ano – que será julgada por júri presidido por Juan Antonio Bayona, diretor de “A Sociedade da Neve” – é provável que a vitória fique com a Argentina de Dolores Fonzi e seu “Belén”, ainda que o mais estonteante dos 17 concorrentes seja o épico americano de tribunal “Nuremberg”, com Russell Crowe em estado de graça. Seja qual deles – ou outro qualquer – a ganhar, quem já venceu em Donostia (apelido da cidade, em referência ao santo que inspira seu nome) foi a esperança.
Se no passado o tema recorrente em quase todos os longas exibidos era a finitude - numa lógica de busca pela dignidade de pessoas em fim de vida e na ótica crepuscular do desmanche de tradições -, em 2025 o assunto mais frequente foi a maternidade. Até seu Filme Surpresa, anunciado em cima da hora e exibido na sexta, o bestial “Frankenstein”, de Guillermo Del Toro, tem um vetor materno em foco.
A Bélgica foi o primeiro território a se destacar no festival a partir da temática da hora com “Six Jours Ce Printemps-là”, de Joachim Lafosse, que é uma aula de delicadeza, de uma trilha sonora acachapante. A trama expõe o racismo europeu ao seguir os passos de uma jovem mãe de gêmeos (Eye Haïdara) que leva seus meninos até a Riviera, para desfrutar da casa de seus ex-sogros, mas sem pedir autorização a eles. A produção francófona veio forte ainda com Arnaud Desplechin e seu “Deux Pianos” e com Claire Denis, que reatou sua parceria com Isaach de Bankolé em “Cri des Gardes”, uma gira decolonial sobre um sujeito misterioso que clama pelo direito de enterrar o corpo de seu irmão morto. Seu roteiro é um primor.
Muitos foram os filmes sobre prisões, sobretudo femininas, sendo que “Belén” é o de maior repercussão. Resgata o caso real, ocorrido em Tucumán, em 2014, quando uma jovem foi presa e condenada por um aborto que não cometeu, embora a Justiça não entenda assim. Dolores Fonzi vive a advogada e ativista que defendeu a ré e dirige essa reconstituição com destreza. A vitória dessa produção seria um gol simbólico em prol das causas femininas e em prol de uma cultura (latina) que hoje sofre com as arbitrariedades de Javier Milei.
Das mães que comoveram San Sebastián, a presidiária em vias de liberdade de “Her Heart Beats In Its Cage” (vivida por Zhao Xiaohong) deixou a Espanha a pensar sobre o ônus que há por trás do amor familiar. Aliás, a sobrevivência das famílias num mundo em transformação foi um dos assuntos do esplendor de documentário que põe o veterano cineasta catalão José Luis Guerín em concurso, a criar uma Comédia Humana a partir de um bairro isolado de Barcelona em “Historias Del Buen Valle”. Esse é o grande trabalho de direção de todo o festival, só equiparado pela investigação de linguagem da polonesa Agnieszka Holland em “Franz”, sobre Kafka, sua prosa e seu legado.
O ator que encarna o autor de “A Metamorfose”, Idan Weiss, encheu olhos com o desempenho performático que construiu sob a batuta da septuagenária realizadora. No entanto, outras duas atuações falaram mais alto na cidade. Angelina Jolie é titular de uma delas, no papel de uma diretora às voltas com um câncer em “Couture”. A outra grande interpretação – a melhor de todo o festival – foi a de Colin Farrell em “Balada de um Jogador”, no papel de um bamba do carteado enfiado nos cassinos de Macau. Vale destaque ainda o trabalho de Jose Ramon Soroiz em “Maspalomas”, uma delirante comédia queer sobre um homem que precisa achar novas formas de gozar... a vida... ao infartar numa suruba gay.
Maior rival de “Belén”, o supracitado “Nuremberg”, não tem lugar para gestações, pois fala de expurgos. Em seu segundo trabalho de direção, construído nas mesmas bases políticas de seu trabalho anterior (“Conspiração e Poder”, de 2015), o prolífico produtor de “Zodíaco” (2007) deu ao público de Donostia seu momento mais “cinemão” de 2025, num espetáculo à moda clássica sobre o julgamento do líder nazista Hermann Göring. A presença de um Russell Crowe afinzaço de brilhar catapulta às alturas o que poderia ser um thriller jurídico corriqueiro, com atuações inflamáveis de Richard E. Grant, Michael Shannon e Rami Malek, o Freddie Mercury de “Bohemian Rhapsody”. O roteiro traz um diálogo fascinante após o outro.
Nos Horizontes Latinos, as maternidades diversas da contemporaneidade inspiraram joias do Chile (“Limpia) e do Equador (“Hiedra”), além de sustentarem um melodrama festivo que fez o cinema brasileiro afirmar suas potências: “Dolores”, de Maria Clara Escobar e Marcelo Gomes, que traz o reator nuclear Carla Ribas no papel de uma apostadora compulsiva. Roney Villela é um dos estandartes de seu elenco e brilhou também em “O Agente Secreto”, nosso potencial ímã de Oscars, no qual o personagem de Wagner Moura quer saber quem foi sua mãe, ainda que seja a partir de um registro de cartório. O fenomenal thriller de Kleber Mendonça Filho está na mostra Perlak, aberta só a prêmios de júri popular. De lá saíram cometas como “La Grazia”, de Paolo Sorrentino, e “O Estrangeiro”, de François Ozon, que, na semana que vem, vão estar no Festival do Rio.
Em suas várias latitudes, San Sebastián sentiu um aroma de brasilidade filtrado por lentes espanholas em “Uma Película De Miedo”, que o paulista radicado na Europa Sergio Oksman filmou num hotel em Lisboa, numa homenagem a “O Iluminado”. Notou-se a excelência lusa no rol de salas de projeção de Donostia com “A Solidão dos Lagartos”, de Inés Nunes, sobre um spa que serve de microcosmo para as incongruências do Presente.
Até o fim do dia, muitas carreiras hão de se repaginar sob a bênção de San Sebastián, que se despede do circuito das mostras competitivas deixando um histórico de debates ferozes e a reciclagem de estrelas.
