Camadas de (Fraçois) Ozon

Campeão de bilheteria, o mais prolífico dos cineastas franceses pode alcançar outro patamar profissional ao concorrer ao Leão de Ouro com 'O Estrangeiro', enquanto ocupa o streaming

Por Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

'O Estrangeiro' pode dar a François Ozon (abaixo) o Leão de Ouro de Veneza

Perguntar ao parisiense François Ozon sobre a conexão consciente de seu "L'Étranger", que terá estreia mundial nesta terça-feira (2), no Festival de Veneza, com sua obra pregressa é convite à ironia, quiçá uma delicada patada: "Meu trabalho é fazer filmes, quem tem que fazer análises dos meus filmes é a crítica. Não me peça para cumprir uma tarefa que é da imprensa", desconversa o cineasta de 57 anos - o mais prolífico da França na atualidade - quando abriu a Berlinale com "Peter von Kant", em 2022.

Atropelada pela pandemia, essa releitura do marco de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) vendeu apenas 81 mil ingressos na França, embora tenha levado multidões aos cinemas em solo brasileiro, no Festival Varilux. Teve, em seu país natal, um público atípico para um cineasta que é sinônimo de sala cheia, como ele comprovou com seu filme seguinte, "O Crime É Meu", ao vender um milhão e noventa e um mil ingressos em 2023.

Embora alterne narrativas mais espinhosas (como "Está Tudo Bem", sobre finitude e eutanásia) com exercícios de gênero sem medo de ser comercial (como a comédia "Potiche", que vendeu 2,3 milhões de entradas), Ozon é sempre a maior diversão, não só para seu público, como para distribuidores e exibidores. "8 Mulheres" foi blockbuster, em 2002, com 3,5 milhões de tíquetes vendidos, e "Dentro da Casa" (2012) passou a marca do milhão também, além de conquistar a Concha de Ouro.

Ele não só faz sucesso nas bilheterias, como ganha prêmios. Seu título mais recente a aportar por aqui, "Quando Chega O Outono", mobilizou 674 mil pagantes em terras francesas e rendeu-lhe a láurea de Melhor Roteiro no Festival de San Sebastián, no norte da Espanha. É um misto de drama sobre velhice e suspense criminal que acaba de entrar na grade da Prime Vídeo.

É um Ozon dos melhores, mas, com "L'Étranger", ele parece querer mais. Há quem diga que o Lido verá hoje seu exercício autoral mais contundente, inspirado pela literatura de Albert Camus (1913-1960). O livro que escolheu, "O Estrangeiro", de 1942, virou peça no Brasil, no início dos anos 2000, e reconfigurou a carreira teatral do ator Guilherme Leme Garcia. Antes, em 1967, foi filmado por um deus, Luchino Visconti (1906-1976), e protagonizado por um titã, Marcello Mastroianni (1924-1996). Todas as adaptações se concentram em Argel, em 1938, onde Meursault, um funcionário tranquilo e modesto na casa dos trinta anos, comparece ao funeral da mãe sem derramar uma lágrima. No dia seguinte, ele engata um romance casual com uma colega, Marie, e rapidamente volta à sua rotina, sem encarar o luto. No entanto, sua vida cotidiana logo é perturbada por seu vizinho, Raymond Sintès, que envolve Meursault em seus negócios obscuros — até que, em um dia extremamente quente, um evento trágico ocorre em uma praia. Quem leu Camus (ou viu as versões de seu best-seller) sabe que se trata da morte de um árabe. O tema, associado a um país como a França, abre a ferida da xenofobia.

Ao investir nesse caminho, Ozon entra num terreno político diferente daquele em que investe com sua estética queer (a luta contra a intolerância e a homofobia). Fez isso antes, em 2019, no longa "Graças a Deus", denunciado abusos sexuais de padres católicos, o que lhe valeu muitos desafetos na Igreja, mas catapultou sua obra para um outro terreno de prestígio, coroado com o Grande Prêmio do Júri da Berlinale.

"Eu não estou preocupado em ganhar o Oscar, nem espero reconhecimento de premiações. A minha preocupação mais sincera é dar ao público uma experiência inusitada a cada filme. Eu gosto do set, adoro trabalhar, então sempre estou ocupado com a criação", disse Ozon ao Correio em San Sebastián, quando "L'Étranger" já estava em gestação, com Benjamin Voisin (com quem fez "O Verão de 85") como Meursault.

Na ocasião dessa conversa, a crítica se encantava com "Quando Chega o Outono", um Ozon crepuscular, com foco na ferrugem sobre os corpos, de olhos voltados para a velhice. O júri de San Sebastián, presidido pela cineasta catalã Jaione Camborda, encantou-se pela maestria com que o diretor domina convenções de dramaturgia ao se arriscar a fazer suspense onde se esperava um drama geracional.

"A morte é parte da vida e, ao pensar nela, eu fico refletindo sobre o quanto precisamos usar bem o tempo que temos. Eu só não imaginava que estava fazendo meu filme mais mortífero, pois pelo menos três pessoas perecem aqui, numa história que não fala de violência bruta, mas tem seus mistérios", explicou Ozon ao Correio da Manhã em San Sebastián. "Meu empenho aqui era criar personagens que pudesse criar conexão com o público sobretudo por carregarem dois lados em si. Parecem agradáveis, no esforço de fazer o bem, mas erram, são falhos".

Veneza termina neste sábado. Na Amazon, há outras pepitas de Ozon como "O Amante Duplo" (indicado à Palma de Ouro de 2017) e o suspense "Swimming Pool: À Beira da Piscina" (2003).