Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Havia uma Colômbia no meio do caminho em San Sebastián

Ubeimar Rios, ator não profissional, brilha no colombiano 'Um Poeta' | Foto: Divulgação

Fazia tempo que a Colômbia não arrasava os quarteirões das premiações do cinema mundial do modo como faz em 2025 com "Um Poeta", vencedor da competição Horizontes Latinos de San Sebastián no último sábado. De maio até agora, quando ganhou o Prêmio do Júri na seção Un Certain Regard de Cannes, seu currículo de conquistas já soma umas sete vitórias e um mar de críticas elogiosas.

Não por acaso, há duas semanas, em meio ao anúncio de "O Agente Secreto" com nosso representante para a apreciação da Academia de Hollywood, um dos votantes que selecionaram o thriller de Kleber Mendonça Filho, o produtor Rodrigo Teixeira, de "Ainda Estou Aqui", citou a fita colombiana com distinção. RT afirmou que, este ano, numa maré distinta daquela na qual o fenômeno popular de Walter Salles surfou, há outros países latino-americanos além do Brasil com títulos fortes e destacou o tal hermano. Simón Mesa Soto é o diretor por trás desse longa-metragem filmado em Medelín que estraçalhou corações em Donostia, na Espanha, e virou uma das principais sensações hispânicas da vez.

A partir deste fim de semana, ele vai estar na Première Latina do Festival do Rio, ao mesmo tempo que as autoridades culturais da Colômbia credenciam-no para ser seu emissário em terras hollywoodianas. A seu lado estará outro título potente de nossa vizinhança continental: "O Olhar Misterioso do Flamingo" ("La Misteriosa Mirada Del Flamenco"), de Diego Céspedes, do Chile, sobre o boom do HIV numa zona de mineração.

Tem muito tempo que a Colômbia não é listada entre as sensações cinematográfica de uma temporada. Isso ocorreu com peso há dez anos, quando "O Abraço da Serpente", de Ciro Guerra, explodiu na Quinzena de Cineastas de Cannes. Em 2022, houve outra lufada de êxito vinda de lá, com "Los Reyes Del Mundo", de Laura Mora, que ganhou a Concha de Ouro, na já citada San Sebastián. No entanto, a onda de entusiasmo que "Um Poeta" gera não parece ter igual entre os acertos autorais da pátria que emplacou joias como "A Vendedora de Rosas" (1998), de Victor Gaviria.

Seria um sonho para Oscar Restrepo, protagonista de "Un Poeta", um dia ser capaz de publicar versos como os de "De Los Gozos Del Cuerpo", de Harold Alvarado Tenorio, seu conterrâneo, mais velho (hoje octogenário... e aclamado), que escreveu (na vida real) estrofes de sabedoria. Segundo ele: "A amizade, velha moeda errante, agora é oferecida por anciães, / doentes, animais, bêbados e loucos. / Nada sabem, os homens, dela: a fugitiva dos séculos". Esse é o tipo de ensinamento de que Oscar precisava no seu périplo profissional pela arte de escrever. O anseio de ser grande - no continente que gerou Gabriela Mistral, Carlos Drummond de Andrade, Pablo Neruda, Raúl Zurita, Bruna Mitrano, Meira Delmar - levou a personagem central do longa de Mesa Soto a dedicar a vida à profissão da escrita. Só não teve o cuidado de maneirar na bebida e de saber frear a língua feroz. A falta de cuidado com esses dois aspectos impediu que a sua potência virasse ato. Assim, só lhe resta lamentar.

Diferentemente do motorista de ônibus metido a Baudelaire de "Paterson" (2016), de Jim Jarmusch, que era um tipo cheio de alegria, Oscar é sorumbático. Perder é sua sina. Na trama filmada em Super 16mm pelo realizador de "Leidi" (Palma de Ouro de Curta de Cannes em 2014), Oscar (interpretado com fluidez por Ubeimar Rios, um ator não-profissional) teve a chance de lançar dois livros e de dar aulas, o que, nem de longe, aplaca seu apetite por prestígio. A obra de criadores como Alvarado Tenorio faz parte dos debates que ele tem com colegas de Letras ao mesurar o património poético de sua Colômbia, lutando mais por uns do que por outros. A pátria de Gabriel García Márquez viu brotar muitos faróis na literatura. Oscar almeja ser um. Se bebesse menos, era mais fácil chegar lá e não estaria, já quarentão, à mercê do quarto que tem na casa da mãe, rejeitado por entes queridos que poderiam amá-lo.

O verbo "desistir" é imposto pela vida a Oscar como um norte inescapável. A crença de que o poema pode levar quem escreve e quem lê à transcendência é o único combustível do seu sonho e da sua coragem. Essa gasolina parece encher também o tanque de uma jovem, Yurlady (Rebeca Andrade), que demonstra ter um talento nato para metáforas, metonímias, aliterações, zeugmas e outras manhas do vernáculo espanhol. Na Medellín filmada por Mesa Soto numa fronteira ténue do naturalismo, ela é um indício de que a chama da invenção lírica arde onde o determinismo económico impõe silêncio e ausência.

Sob a granulacão no quadro composto pelo diretor de fotografia Juan Sarmiento G., "Un Poeta" põe os lugares comuns históricos de aspereza da América Latina em foco ao mapear a construção de um projeto de parceria artesanal (entre mestre e aprendiz) num rastreio do que a euforia literária pode gerar de transformação prática. Oscar vê em Yurlady uma voz capaz de mudar os paradigmas da poesia na Colômbia. Nela existe virtude estética e a vivência singular das angústias da escassez. A questão: talvez ela só queira ser uma adolescente que faz as unhas enquanto curte, suavemente, o passar dos dias. Para a dinâmica cultural do assistencialismo, ela é um prato cheio para bolsas, projetos de incentivos, verbas públicas. Para Oscar, ela é a projeção do que ele não chegou a ser.

Com delicadeza e cirúrgica mirada sociológica, Mesa Soto foi premiado ainda em Lima, em Monique e em Melbourne. Pedra alguma parece estar em seu caminho.