Há chances de prêmios para os três longas-metragens argentinos que, contrariando o desdém de Javier Milei pela cultura de sua pátria, disputam a Concha de Ouro de San Sebastián numa fase de cofres vazios para a produção cinematográfica daquela pátria. "27 Noches" pode coroar a atuação de Marilú Marini; "a direção de Milagros Mumenthaler em "Las Corrientes" tem tudo para ser laureada; e "Belén", de Dolores Fonzi, é "O" favorito, entre todos os títulos em concurso. No entanto, a ficção que de nuestros Hermanos que mais ecoou pelo evento basco se posicionou nos Horizontes Latinos, seção dedicada a experimentos das Américas, e chegou lá trazendo no currículo um Urso de Prata da Berlinale: "El Mensaje", de Iván Fund. Um toque de fantasia sobrenatural assegura encantamento a esse road movie em preto e branco.
"A construção de um estado depende do pacto social e, hoje, em nosso país, vivemos sob um governo autoritário que não estimula a inclusão", disse ao Correio da Manhã o ator Marcelo Subiotto, hoje uma das estrelas de maior êxito da Argentina, premiado em San Sebastián, há dois anos, por "Puan".
Um ano depois de realizar um "panelaço" no Teatro Kursaal, a sede das exibições de San Sebastián, com participação (por vídeo) do muso Ricardo Darín, o cinema argentino volta a clamar por seu direito à existência e à criatividade, em meio ao governo Milei, apoiando-se na excelência de "El Mensaje". O Prêmio do Júri que recebeu no Festival de Berlim comprovou o vigor de sua realização. O cineasta Iván Fund apela para a linguagem visual em P&B para criar uma narrativa de tintas fantásticas sobre uma menina com o dom de falar com animais mortos. O clima de sua vida não é de assombro, apesar do que a premissa sugere, mas, sim, de doçura.
"Um filme não é um evento isolado, é uma expressão que está ligado ao que veio antes e ao virá depois", disse Fund ao Correio na Berlinale.
A seu lado em solo germânico, a produtora Laura Mara Tablón dava a medida dos problemas que a indústria cinematográfica de sua pátria passou a viver após a eleição de Milei. "Não há apoio hoje para nenhum filme", disse Laura ao festival. Sua fala encontrou ressonância com o desabafo da atriz Dolores Fonzi, quando projetou "Belén", adaptação de um caso real sobre uma jovem presa sob a (injusta) acusação de ter forçado um aborto. "Nossa produção de filmes baixou de cem par um e não existem mais suportes públicos", disse Dolores, que protagonizou, há dez anos, o cult "Paulina", vencedor da Semana da Crítica de Cannes.
Apesar da aspereza em seus bastidores, a autoralidade da filmografia argentina desabrocha em "El Mensaje", que celebra a doçura e o companheirismo numa estrutura on the road que lembra "La Strada" (1954), de Federico Fellini.
"A evocação ao espectro felliniano me deixa contente pois dialoga com o mundo do cinema no qual eu quero que "El Mensaje" esteja inserido", disse Fund ao Correio da Manhã.
A seu lado, em San Sebastián, Subiotto justificava o acerto do longa: "É um filme rodado em família, com a certeza de que artistas são testemunhas na transformação social e agentes no empenho social para a compreensão dos vínculos empáticos possíveis para nossa união".
No roteiro filmado por Fund, a personagem central é uma criança em fase de dentes de leite com a capacidade de se comunicar com bichos, inclusive aqueles que estão na fronteira entre a vida e a morte. Um dos tutores da menina, Roger (papel de Subiotto) cuida dela como um tesouro, por razões sentimentais e profissionais. Roger agencia as consultas que a guria dá para quem anseia por contato com finados animaizinhos.
"É uma família periférica, que está cercada pelo mistério", disse Subiotto.
Na já citada mostra Horizontes Latinos, uma das maiores estrelas autorais argentinas no posto da direção, Lucrecia Martel, volta à ribalta com "Nuestro Tiempo", um estudo documental dos bastidores políticos da morte do militante indígena Javier Chocobar, em 2000. O ativista foi assassinado por latifundiários, a tiros, ao lutar contra a remoção de sua comunidade de suas terras ancestrais. Sua execução apareceu em um vídeo no YouTube. Este documentário revela os 500 anos das "razões" (leia-se "preconceitos") que levaram a esse tiroteio, tanto com uma arma quanto com uma câmera, e o contextualiza no sistema de posse fundiário que surgiu em toda a Pangeia Latina.
Neste sábado o júri dos Horizontes Latinos, que conta com a produtora carioca Tatiana Leite, vai anunciar o longa vencedor, sendo que o Brasil concorre ali com "Dolores".