Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Maria Clara Escobar e Marcelo Gomes: 'O cinema do Chico (Teixeira) fala muito de pessoas e de suas relações'

Maria Clara Escobar e Marcelo Gomes, cineastas | Foto: Rodrigo Fonseca

A frase que serve de título a esta entrevista feita a quatro mãos pela dupla de cineastas Maria Clara Escobar e Marcelo Gomes logo que foram selecionados pelo Festival de San Sebastián para concorrem ao prêmio Horizontes Latinos com "Dolores". O artista que mencionam é o diretor Chico Teixeira (1958-2019), que idealizou esse contagiante melodrama, mas morreu sem finalizá-lo. Duas de suas atrizes do coração, Carla Ribas e Gilda Nomacce, entraram no projeto, que Gomes assumiu para si, convocando Maria Clara - uma habitual parceira de criação - para filmar com ele.

"O cinema do Chico fala muito de pessoas e de suas relações diante das condições que a vida apresenta. E nosso cinema também é sobre isso. Buscamos construir e investigar a vida de pessoas e personagens, cada um à sua forma. Chico nos deixou essas três mulheres que vivem em mundos singulares, sobre as quais ele começou a sonhar e para nós foi um presente seguir sonhando".

Domingo passado, lançaram "Dolores" e San Sebastián veio abaixo, entre lágrimas e aplausos com a alquimia entre os diretores. E Ribas e Gilda têm culpa e tanto no cartório da excelência, num elenco em estado de graça, com direito a canja de Zezé Motta, a cantar, e a canção de Odair José na trilha.

No filme de Maria Clara e Marcelo, o público de San Sebastián riu, ficou tenso e chorou peripécias da vendedora de roupas íntimas Dolores (Ribas), que chega aos 65 anos assolada pelo vício em jogo. Não por acaso, seu projeto para o futuro é abrir um cassino, apoiada em um sonho premonitório de êxito. As visões que tem não a livraram de perder muita coisa, entre elas o apreço de sua única filha, a também comerciante de lingerie Deborah (Naruna Costa, um vulcão na tela). Ela suspeita de que seu pai morreu de desgosto com a dependência de Dolores, sua companheira, em apostas. Deborah também é mãe. Sua filha, Duda (Ariane Aparecida) é mais compreensiva com a avó. Trabalha numa loja de armas e sonha em se mudar para os EUA, a fim de poder aproveitar a vida com mais conforto.

A fotografia de Joana Luz e a atuação estonteante de Roney Vilella como Bigode (o quase namorado de Dolores) são trunfos a mais do longa. Seus diretores falam ao Correio sobre como sua dramaturgia se construiu.

De que universo social "Dolores" fala?

Maria Clara Escobar: É uma São Paulo de uma classe média baixa trabalhadora. Mum mundo em que o trabalho define a nossa identidade, essas mulheres definem que trabalho querem para si. São mulheres periféricas que desejam mudar de vida. A gente queria muito filmar em Parelheiros porque é uma São Paulo diferente, com mata e rio.

Marcelo Gomes: É uma realidade de empreendedorismo em que a periferia não é vítima. Ela é ação. O Chico costumava fazer longas pesquisas sobre universos que não conhecia. Investigava tanto que as personagens apareciam. Foi assim com os salões de beleza, em "A Casa de Alice", e com as feiras livres em "Ausência". Em "Dolores", buscamos o entorno das prisões e cassinos clandestinos, sempre fugindo do arquétipo da periferia lúgubre.

Por que a opção pelo Paraguai para ser a Eldorado das personagens?

Maria Clara Escobar: Para discutir a ideia do sonho possível, que se constrói ao cruzar uma fronteira, num simbolismo de liberdade. Essas mulheres querem ser livres.

Marcelo Gomes: O Paraguai, com seus cassinos, é a Las Vegas da América Latina e queríamos que "Dolores" conversasse com o continente. Estamos tentando entender quem somos, ao largo de todo o legado indígena e africano que nos compõe.

É difícil imaginar uma São Paulo mais colorida e mais almodovariana do que a cidade que vocês retratam. Como a luz foi desenhada na direção de fotografia?

Maria Clara Escobar: Joana Luz é uma fotógrafa que vem do analógico, que gosta da coisa artesanal. A gente queria um filme que fosse dourado... gold...

Marcelo Gomes: Ouvi um comentário ótimo: "É uma ode a lantejoula". Fomos por aí e Chico ia gostar. Esse colorido revista a noção que a gente faz da classe média baixa a partir do desejo de viver, da alegria.