Pintxos cinéfilos: confira o que de melhor foi exibido em san Sebastián
O suntuoso cine teatro Victoria Eugenia é um dos locais de exibição dos filmes em cartaz no Festival de San Sebastián | Foto: Jorge Fuembuena/SSIF
Situada numa área do norte da Espanha estimada em 61 km² banhados pelas águas do Golfo da Biscaia, San Sebastián, cidade fundada em 1180 d.C., inaugurou em 1953 um dos festivais de maior prestígio do mundo, capaz de atrair cineastas do mais alto calibre criativo. De visual estonteante, a região é famosa pelos pintxos, iguarias gastronômicas que combinam rodelas de pão com mariscos, pimenta, crustáceos, anchovas, queijos e presunto. A mistura que se viu no recorte curatorial de curtas, longas-metragens e séries exibidos por lá desde o último dia 19, quando sua 73ª edição começou, sob a direção artística de José Luis Rebordinos, assegurou às suas plateias uma alquimia de sabores igualmente singular. Por isso, Donostia (apelido daquele território, onde se fala espanhol, basco e euskera), permaneceu, um ano a mais, numa posição estratégica ao lado das maratonas audiovisuais de Roterdã, Berlim, Cannes, Veneza e Locarno. Continua nas páginas seguintes
Estrelas de porte GG brigam pela Concha de Ouro
Belén | Foto: Divulgação
O Brasil revelou nesta 73ª edição do festival espanhol uma promessa de vitórias com CEP em São Paulo: "Dolores", de Maria Clara Escobar e Marcelo Gomes, sobre três gerações de uma família de classe média baixa chefiada por uma jogadora compulsiva (Carla Ribas, num magistral desempenho). Em sessão paralela, "O Agente Secreto", do pernambucano Kleber Mendonça Filho, também esteve em cartaz, fora da competição principal, mas pode conquistar a láurea de júri popular do evento. Na corrida pelo troféu Concha de Ouro, a ser entregue neste sábado por um júri chefiado pelo realizador J. A. Bayona (de "O Impossível"), estrelas de porte GG de Hollywood (Angelina Jolie, Colin Farrell, Matt Dillon e Russell Crowe) reciclaram suas personas, num certame que tem o drama de tribunal "Belén" como seu favorito. A atriz Dolores Fonzi dirige e estrela a produção, sobre a luta de uma advogada para salvar uma jovem condenada injustamente por uma tentativa de aborto não comprovada.
Confira a seguir o que San Sebastián viu de mais potente nos últimos sete dias.
Blue Heron | Foto: Divulgação
BLUE HERON, de Sophy Romvary (Canadá/ Hungria): Um painel de angústias geracionais, este drama sobre amadurecimento e aceitação familiar rasga corações ao falar de desamparo. Tudo se passa no fim da década de 1990, quando Sasha, de oito anos, e sua família de imigrantes húngaros, mudam-se para uma nova casa, em Vancouver. Seu recomeço é interrompido pelo comportamento cada vez mais perigoso de Jeremy, o filho mais velho, que esbanja desconforto diante do Novo Mundo.
Limpia | Foto: Divulgação
LIMPIA, de Dominga Sotomayor (Chile): Espécie de "Que Horas Ela Volta?" hispânico, um tanto mais fofo (e numa certa medida mais feroz) do que o sucesso brasileiro de 2015. Há delicadeza em sua forma de explorar o cotidiano de uma trabalhadora doméstica (papel de María Paz Grandjean) e uma garota de seis anos (Rosa Puga Vittini) que convivem numa casa de alta classe média na qual abusos patronais são disfarçados numa polidez que paga contas, mas não justifica explorações.
Nuremberg | Foto: Divulgação
NUREMBERG, de James Vanderbilt (EUA): Em seu segundo trabalho de direção, construído nas mesmas bases políticas de seu trabalho anterior ("Conspiração e Poder", de 2015), o prolífico produtor de "Zodíaco" (2007) deu ao público de Donostia seu momento mais "cinemão" de 2025, num espetáculo à moda clássica sobre o julgamento do líder nazista Hermann Göring. A presença de um Russell Crowe afinzaço de brilhar catapulta às alturas o que poderia ser um thriller jurídico corriqueiro, com atuações inflamáveis de Richard E. Grant, Michael Shannon e Rami Malek, o Freddie Mercury de "Bohemian Rhapsody". O roteiro traz um diálogo fascinante após o outro.
Couture | Foto: Divulgação
COUTURE, de Alice Winocour (França): Imperfeito, mas imperdível, este painel do mundo da moda, e sua efemeridade, arranca de Angelina Jolie sua interpretação mais comovente. Ela vive uma cineasta que, contratada para filmar a Paris Fashion Week, descobre ter um câncer de mama. Seu conflito pessoal é contatado numa narrativa de painel, centrada em mulheres que buscam sua voz na indústria dos desfiles, entre elas uma jovem modelo de Nairóbi.
L'Étranger | Foto: Divulgação
L'ÉTRANGER, de François Ozon (França): A frase "Eu matei um árabe" caiu como um estrondo nas telas de Donostia, na tradução de intolerâncias seculares, galvanizadas sob o jugo colonial denunciado em 1942 na literatura de Albert Camus (1913-1960), de onde brota esta pérola. É um Ozon no seu estado mais radical, embrulhado (graças à maturidade que três décadas de carreira agora lhe asseguram) numa embalagem de refinamento formal. O belga Manu Dacosse, diretor de fotografia nesta aventura existencialista, tem responsabilidade fulcral no vigor do que se vê. Mérito também para Benjamin Voisin, que vive Meursault, funcionário de um posto comercial que mata um jovem, numa praia, pouco depois de perder a mãe.
Mi Amiga Eva | Foto: Divulgação
MI AMIGA EVA, Cesc Gay (Espanha): Aulão de perseverança dada pelo comediógrafo por trás de sucessos como "Trumán" (2015). A atriz Nora Navas atua com fôlego titânico no papel de Eva, que, prestes a completar 50 anos, cansou da rotina. E casada há duas décadas e tem dois filhos adolescentes. Durante uma viagem de negócios a Roma, Eva percebe que quer se apaixonar novamente antes que seja "tarde demais". De volta a Barcelona, começa uma nova vida, solteira e aberta ao jogo da sedução e do romance. Ao longo de um ano, vamos seguir suas peripécias românticas.
Two Seasons, Two Strangers | Foto: Divulgação
TWO SEASONS, TWO STRANGERS, de Sho Miyake (Japão): Ganhador do Leopardo de Ouro de Locarno, em 2025, esta produção trava um diálogo com as HQs de Yoshiharu Tsuge, um mestre dos mangás. No enredo do longa, o casal Nagisa e Natsuo se encontra à beira-mar. Engatam um esboço de romance trocam palavras constrangedoras e entram no oceano encharcado pela chuva. Essa porção do longa se passa num verão. Já no inverno, Li, uma roteirista, viaja para uma vila coberta de neve. Lá, ela encontra uma pousada administrada pelo taciturno atendente chamado Benzo. Suas conversas raramente se conectam, mas eles partem em uma aventura sentimental inesperada.
Duas Vezes João Liberada | Foto: Divulgação
DUAS VEZES JOÃO LIBERADA, de Paula Tomás Marques (Portugal): A partir das vivências de um corpo avesso ao binarismo histórico, inconformado com o dito "determinismo biológico", este experimento poético festeja o desejo de pessoas que almejam ser as profetas de suas próprias histórias, embora a Inquisição cruze seu caminho.
Los Tigres | Foto: Divulgação
LOS TIGRES, de Alberto Rodríguez (Espanha): Um filme de ação subaquático, dos mais enervantes, sobre mergulhadores envolvidos com tráfico. Não há pancadarias (à exceção de uma queda de braço), nem tiroteios, mas há perseguições, armas em punho, tensão nas profundezas do mar e a sensação de que Estrella e o irmão Antonio (Bárbara Lennie e Antonio de la Torre) podem morrer a qualquer momento. Essa sensação nasce da montagem de Jose Moyano, que revela uma fluidez pouco comum no grande cinema europeu. A sua edição é surpreendente até para os padrões médios de Hollywood.
Sai: Disaster | Foto: Divulgação
SAI: DISASTER, de Hirase Kentaro e Seki Yutaro (Japão): Que inusitado é ver um "filme de monstro" na seção competitiva de um festival classe AA da Europa. Este thriller nasceu como minissérie de TV e foi condensado como filme numa montagem enervante editada por seus diretores. A trama é centrada sob a investigação de quatro mortes suspeitas, que parecem suicídios. O diferencial é que cada uma delas envolve a presença de um ser mefistofélico, vivido por Teruyuki Kagawa, um ator genial que sempre encarna psicopatas em longas nipônicos.
Nuestra Tierra | Foto: Divulgação
NUESTRA TIERRA, de Lucrecia Martel (Argentina): Rainha do uso do som no cinema, a diretora de "O Pântano" (2001) faz um estudo documental dos bastidores políticos da morte do militante indígena Javier Chocobar, em 2000. O ativista foi assassinado por latifundiários, a tiros, ao lutar contra a remoção de sua comunidade de suas terras ancestrais. Sua execução apareceu em um vídeo no YouTube. Este documentário revela os 500 anos das "razões" (leia-se "preconceitos") que levaram a esse tiroteio, tanto com uma arma quanto com uma câmera, e o contextualiza no sistema de posse fundiário que surgiu em toda a Pangeia Latina.