Desde sua primeira exibição mundial, em maio, nas telas do Festival de Cannes, tendo os irmãos Agustín e Pedro Almodóvar entre seus produtores, "Sirât" ganhou o status de "filme obrigatório" por apostar num casamento (raro) de transcendência espiritual e experimentação formal ao falar de perdas e reconfigurações. É político em sua radiografia da falta de pertencimento entre as populações da Europa que não se rendem a regras históricas do capitalismo. Tratado como um dos favoritos à Palma de Ouro de 2025 desde sua projeção inicial, deixou a Croisette com o Prêmio do Júri, dado a seu diretor, o galego nascido em Paris Oliver Laxe, num empate com o filme alemão "Sound of Falling", de Mascha Schilinski.
Agora, passa por Donostia (o apelido de San Sebastián nas bocas que falam basco ou o euskara) feito um trator, com a força que ganhou depois de ter sido escolhido pela Espanha como seu representante oficial na corrida por uma vaga na briga pelo Oscar. É com essa aura que chegará ao Brasil, no dia 15 de outubro, para abrir a Mostra de São Paulo.
As atrizes Stefania Gadda e Jade Oukid estarão presentes na sessão inaugural do evento paulista, que vai de 16 a 30 de outubro. Laxe passa pelo Festival de San Sebastián na seção Made In Spain, dedicada à prata da casa, ao lado de "Romería", de Carla Simón; "Mi Amiga Eva", do campeão de bilheteria Cesc Gay; e "Sorda", de Eva Libertad.
Para o público basco, o nome "Sirât" é associado a uma tietagem na linha "já ganhou" quando se fala de seu destino rumo ao Oscar. Cerca de uma semana após o fim da maratona cinéfila da Côte d'Azur, sites e revistas estrangeiras seguem a incensar sua dramaturgia de tons existencialistas, enquadrando-a como um dos longas-metragens mais possantes do ano. Uma enquete organizada pelo jornalista Christian Blauvelt para a "IndieWire", com 48 críticos estrangeiros, elegeu-o como "O" melhor de Cannes, incluindo "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho, em quinto lugar em seu pódio. Laxe também foi citado na votação de Melhor Roteiro.
Ninguém nessa votação ignorou "Un Simple Accident", que rendeu a Palma ao iraniano Jafar Panahi. Essa produção aliás faz parte da seção Perlak de San Sebastián, brigando por uma láurea de júri popular. O filme foi escolhido pela França, que o coproduziu, para ser seu emissário na Academia de Hollywood. Panahi é respeitado pela imprensa com unanimidade, por sua obra, por sua vivência da brutalidade institucional de sua pátria e pela poesia em seu modo de narrar. Entrou na lista montada por Blauvelt, mas ficou atrás de Laxe, que renovou seu prestígio e a atual fase de excelência da Espanha na telona.
Depois de ter interrompido seu ciclo de longas no Marrocos ("Mimosas"; "Todos Vós Sodes Capitáns") para filmar "O Que Arde" (Prêmio do Júri na mostra Un Certain Regard de 2019) na sua Galícia, Laxe retornou aos desertos do norte da África para um périplo que começa numa micareta de música eletrônica e passa por um chão de minas explosivas, numa triagem de violências históricas. Insiste, contudo, que sua mirada não é de desesperança, mas de aliança. "Parece que temos um horizonte duro, mas ele, no fundo, é protetor, o que exclui a solidão, sempre estamos acompanhados. O filme mostra que quando o indivíduo se fratura ele se instaura num lugar do coletivo", disse o realizador ao Correio em Cannes.
Capaz de ser radical e melífluo ao mesmo tempo, numa realização ousada, "Sirât" é batizado em referência a um percurso de fé: "Esse nome se refere ao caminho que liga o Inferno ao Céu, como se fosse um espaço de transformação", explica Laxe.
Tudo começa com uma rave no Marrocos, num espaço desértico de rocha e areia. Amalgamada à fotografia de Mauro Herce, a engenharia de som consegue transportar o público para aquela paisagem numa fricção sinestésica.
"Amo a cultura rave e queria partir dela para cruzar o limite do que é humano ao seguir uma figura que confronta com o abismo. Tenho uma equipe fiel, que é uma família, que está sempre comigo na construção dos meus filmes. Eles são, sim, complicados de fazer", confessou Laxe ao Correio. "É um filme que se desmaterializa ao passar do bate-estacas da música techno a uma instância quase celestial de esoterismo".
Na trama de "Sirât", um pai (Sergi López) e o filho chegam a uma rave perdida nas montanhas do sul do Marrocos. Eles estão à procura de Mar - filha e irmã - que está desaparecida há vários meses numa dessas festas intermináveis. Imersos na melodia bate-estaca e numa liberdade crua que lhes é estranha, eles distribuem incansavelmente a foto dela à espera que alguém a reconheça. A esperança vai-se esvaindo, mas eles perseveram e seguem um grupo de ravers para uma última festa nas montanhas. À medida que se aprofundam na imensidão escaldante, a jornada leva-os a confrontar os próprios limites.
"Falam comigo sobre 'Mad Max', por conta do terreno arenoso, mas minha referência gravitou mais por 'Stalker', pela obra de Robert Bresson e pelo cinema americano dos anos 1970", disse Laxe.