Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Jean-Luc Godard na Estação Linklater

Assegurado pela Mostra de São Paulo, 'Nouvelle Vague' passa será exibido nesta sexta-feira (19) em San Sebastián, na Espanha. Longa recria as filmagens de 'Acossado' | Foto: Divulgação

Estimativas históricas de instituições como a Unifrance e de veículos de mídia como a revista "Cahiers du Cinéma" apontam que "Acossado" ("À Bout De Souffle") teve um custo estimado em 400 mil francos (o equivalente a US$ 80 mil) e vendeu 2.295.912 ingressos só na França, a partir de 16 de março de 1960. O Urso de Prata de Melhor Direção dado a Jean-Luc Godard (1930-2022) foi um chamariz de público. O que esses números não revelam sobre a aula de semiótica godardiana agendada para ser exibida na noite desta segunda (15), às 21h, pelo Estação NET Botafogo, é o impacto que essa picardia estilística teve sobre o cinema, redefinindo as bases da edição de filmes (a partir da montagem de Cécile Decugis) e as formas de usar a linguagem audiovisual como instrumento revolucionário.

A inclusão do longa-metragem na retrospectiva que o Grupo Estação dedica ao cineasta François Truffaut (1932-1984) se articula com a participação dele no argumento rodado por Godard. Essa rodagem - caótica - é tema de um dos exercícios autorais mais badalados de 2025: "Nouvelle Vague", do americano Richard Linklater, que brilhou na luta pela Palma de Ouro e Cannes, em maio. De 16 a 30 de outubro, a produção estará no Brasil, na Mostra de São Paulo. Antes, na sexta-feira, ela passa pelo Festival de San Sebastián, no norte da Espanha, inaugurando a mostra Perlak, em disputa por uma láurea de júri popular, tendo "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho, como rival.

É hora de plateias espanholas entenderam o tanto de "fofura" que Cannes enxergou num filme associado a um mito das telas que poderia ser classificado como qualquer coisa, menos "fofo". De nacionalidade suíça, Godard era carne de pescoço... e não só nos sets. "Nouvelle Vague" é o retrato de sua irascibilidade disfarçada de esnobismo, sob litros de erudição acadêmica, mas é também um tratado sobre sua genialidade. Richard Linklater, um artista cultuado, já indicado a estatuetas de Hollywood por sucessos como a trilogia "Antes do Amanhecer" (1995-2013) e por "Boyhood" (2014), construiu sua cinefilia admirando "Acossado".

Há chances de "Nouvelle Vague" ser o representante oficial da França para o Oscar de Melhor Filme Internacional, em 2026. Ele faz parte de uma lista prévia feita pelo Centro Nacional de Cinema francês, que inclui a animação "Arco", de Ugo Bienvenu, vencedor do troféu Cristal, no Festival de Annecy; o misto de drama e thriller político "Un Simple Accident", que rendeu a Palma de Ouro a Jafar Panahi; e o suspense cômico "Vie Privée", de Rebecca Zlotowski, com Jodie Foster. O eleito será conhecido nesta sexta.

Linklater nasceu em Houston, no Texas, há 65 anos, e tem no inglês seu idioma de berço, mas o francês é a língua dominante na trama de seu novo longa. O foco de "Nouvelle Vague" é a cena cultural parisiense de 1959. Nesse contexto, o cineasta por trás do "Escola de Rock" (2003) faz um voo de 360º sobre a História do século XX, pelas vias da cultura cinematográfica, para retratar o set de filmagem de "Acossado". Foi ali que Godard, então crítico de cinema, passou a dirigir, numa transição profissional que abriu precedentes para uma nova forma de editar imagens, usando a Filosofia como eixo para a construção de planos.

Apoiado num requintado visual em PB, assegurado pelo diretor de fotografia David Chambille, "Nouvelle Vague" ostenta o trabalho de realização mais maduro de Linklater. Ele entrou numa vibe de revisar os feitos de artistas de veia indomável como o compositor Lorenz Hart (1895-1943), personagem central de "Blue Moon", que lançou na Berlinale, em fevereiro, na briga pelo Urso de Ouro. Agora é a vez de Godard. Um Godard moleque ainda, vivido com ironia por Guillaume Marbeck. JLG era sua alcunha na vida cultural do Velho Mundo. A sigla sugere saber.

Aos 29 anos, JLG era um escriba de temperamento ferino da "Cahiers du Cinéma" (revista criada em 1951 e encarada como Bíblia pela intelectualidade cinemeira) quando resolveu rodar seu primeiro longa, para não ficar para trás dos colegas François Truffaut (1932-1984) e Claude Chabrol (1930-2010), interpretados no quindim de Linklater por Adrien Rouyard e Antoine Besson. Os dois, ao lado da belga Agnès Varda (1929-2019), inventaram a tal Nova Onda, o movimento que deu status de modernidade ao cinema francês, ao propor que cada exercício fílmico fosse uma revolução em si, na forma e no conteúdo. A centelha revolucionária de Godard se acende com a ideia de uma história de amor entre uma jovem de classe média metida a jornaleira - figura encarnada por Jean Seberg, que, no longa hoje em disputa em Munique, é encarnada por Zoey Deutch - e um malandro com pinta de gangster - Jean-Paul Belmondo, vivido esplendidamente por Aubry Dullin.

A cada nova tomada, Godard enlouquece a equipe, inflama o mítico fotógrafo Raoul Coutard (Matthieu Penchinat) e tira Seberg da zona de conforto.

O Estação NET Botafogo há de viver momentos deliciosamente confortáveis nesta segunda com "Acossado", batendo cabeça para a mítica de Truffaut, que aparece em "Nouvelle Vague", vivido por Adrien Rouyard.