Concorrendo com divos autorais de gerações posteriores à sua como o mexicano Guillermo Del Toro, o parisiense François Ozon e o grego Yorgos Lanthimos, Jim Jarmusch, o realizador mais "toca Raul" do cinema americano, surpreendeu o planisfério cinéfilo, no último fim de semana, ao conquistar o Leão de Ouro do Festival de Veneza, derrotando os rivais supracitados sem ter a menor expectativa de vitória.
"Que merda!" foi sua expressão no palco do Lido, o epicentro do evento italiano, ao ser premiado por "Father Mother Sister Brother", comédia dramática em três segmentos, editada pelo montador brasileiro Affonso Gonçalves. Um elenco monumental (Tom Waits, Adam Driver, Mayim Bialik, Charlotte Rampling, Cate Blanchett, Vicky Krieps e Françoise Lebrun) eletrifica uma narrativa trifurcada, salpicada de riscos e lágrimas pelo diretor de 72 anos, encarado desde a década de 1980 como um papa da independência criativa, sem um vínculo sequer com a política dos estúdios.
O modo indie de filmar começou lá no fim dos anos 1950, com John Cassavetes (1929-1989), e ganhou tônus de 1967 a 1981 com a geração Easy Rider de Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma e Spielberg, que, quase em bando, fez votos de boa vizinhança com as grandes corporações.
Jarmusch, com seu ar maluco beleza de tratar as drogas e a cena musical, não. Se há lugar hoje na América para criadores como Sean Baker - coroado com quatros Oscars, em março, por "Anora" -, capazes de filmar com iPhone a fim de encurtar os custos, foi JJ quem arou esse terreno. Um terreno onde Steven Soderbergh, Quentin Tarantino, Darren Aronofsky, Wes Anderson e Paul Thomas Anderson fincaram suas bandeiras.
Por isso, a escolha do diretor de "Os Mortos Não Morrem" (longa de abertura do Festival de Cannes de 2019) pelo júri veneziano, que tinha Fernanda Torres no time, foi um aceno com a liberdade de criar, o que gera uma corrida hoje no streaming por sua obra. A MUBI encampou o filé mignon dele pra si. "O Jim é um dos mais importantes diretores independentes do cinema americano, pois faz seus filmes sem comprometer a visão que tem", disse Affonso Gonçalves ao Correio da Manhã, por Whatsapp. "Metade desse filme novo dele fizemos remotamente: eu em LA e ele em NY. Nas últimas seis semanas trabalhamos juntos em Nova York", detalha o bamba paulista da edição, que montou "Ainda Estou Aqui" para Walter Salles, e comemorou a conquista do Oscar pelo retrato delicado da resistência à ditadura brasileira.
O tema de Jarmusch em "Father Mother Sister Brother" é família... são laços de afeto. Há um lugar de honra para a lealdade em seu cinema, com destaque para "Daunbailó", concorrente à Palma de Ouro de 1986. Hoje na Mubi, essa comédia em P&B mucho loca narra a convivência de presos de quinta categoria do xilindró à fuga. Um Roberto Benigni pré "A Vida É Bela" (1998) se junta a Tom Waits e John Lurie nesse estudo sobre a vadiagem num país onde time is money.
Nascido em Akron, em Ohio, Jarmusch estreou em 1980, com "Férias Permanentes", que lhe rendeu um prêmio no Mannheim-Heidelberg International Film Festival, na Alemanha. O longa seguinte, "Estranhos no Paraíso" - que se encontra no www.mubi.com - ganhou o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno de 1984 e o troféu Caméra d'Or de Cannes. Por lá se vê ainda "Sobre Café e Cigarros" (2003), com Bill Murray em estado de graça; "Dead Man" (1995), com Johnny Depp; "Uma Noite Sobre a Terra" (1991), que tem Winona Ryder num coletivo de estrelas brilhante; e "Trem Mistério" (1989), com Tom Noonan.
Na plataforma Looke acha-se "Paterson" (2016) e na Prime Video rola ver "Amantes Eternos" (2013) e a obra-prima do realizador, "Flores Partidas", coroada com o Grande Prêmio do Júri de Cannes em 2005, à luz de um Bill Murray impagável.
"Filmo histórias sobre táticas de se preservar o encantamento em relação às coisas simples e corriqueiras da vida", disse Jarmusch, ao Correio da Manhã, na França. "Sem a simplicidade só resta desilusão".
