Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Silvio Tendler para a Eternidade

Em entrevista ao Correio em abril, Silvio Tendler previu que as novas tecnologias, em particular as IAs, ajudarão a reinventar os documentários Silvio Tendler em Moscou durante a realização de 'Nas Asas da Pan Am' | Foto: Divulgação

Alguns hão de chamar de cerimônia do adeus, mas, na prática, a sessão em homenagem a Silvio Tendler (1950-2025) no Estação NET Rio, nesta quinta, às 19h, é um "segue com a gente", um "vai embora não". Uma projeção de "Nas Asas da Pan Am (2020), finalizado em plena pandemia, na celebração do 70º aniversário do realizador, será exibido no réquiem cinéfilo que revisita sua trajetória única em circuito.

Tendler morreu na sexta-feira passada, em decorrência de complicações do diabetes, mas emplacou uma mítica. Nenhum outro documentarista brasileiro vendeu tanto ingresso quanto o cineasta carioca, conhecido como o mais ativo representante da História entre os artesões da não ficção a filmar em língua portuguesa. Seu "O Mundo Mágico dos Trapalhões" (1981) somou 1.892.117 pagantes, tornando-se um caso raro de blockbuster de um segmento que (muito) raramente ultrapassa 250 mil espectadores.

Hoje na Prime Vídeo da Amazon, esse longa-metragem sobre Didi, Dedé, Mussum e Zacarias em suas vidas fora das câmeras coroou uma espécie de era de ouro para as narrativas documentais do país nas salas de projeção. Ainda nos anos 1980, em meio ao processo de redemocratização, Tendler lotou cines com "Os Anos JK - Uma Trajetória Política" (1980), que totalizou 800 mil espectadores, e "Jango" (1984), que contabilizou cerca de 1 milhão de entradas vendidas.

Na dramaturgia de ambos, ele contrapôs o otimismo da era pré-1964 à sisudez do regime militar. Completou sua "Trilogia Presidencial" com "Tancredo: A Travessia", lançado no festival É Tudo Verdade, em 2011. Em meio à euforia comercial de seus maiores êxitos, ele fundou a produtora Caliban e virou professor na PUC-Rio. "Sou um cineasta sem câmera", orgulhava-se ao explicar que contava mais com imagens de bancos de dados de cinematecas, acervos públicos e TVs do que com cenas rodadas por sua equipe, tendo a filha, Ana Rosa Tendler, como produtora.

"Os detentores dos arquivos estão cobrando cada dia mais caro e isso é um fenômeno universal", disse Silvio, em entrevista ao Correio da Manhã, em março, ao comemorar seus 75 anos, preparando a estreia de "Brizola - Anotações Para Uma História", que finalizou em 2024. "Fui comprar arquivo na TV Cultura, do Brizola no "Roda Viva", e um gestor me falou: "Arquivo de morto é mais caro, 7 mil reais um minuto". Só que eles não perdem por esperar, porque a inteligência artificial vai transformar os arquivos em sucata. Daqui para frente, a verdade e a construção da memória não poderão abrir mão das novas tecnologias da reconstrução dessa memória, com novas técnicas narrativas. Já no 'Brizola' eu utilizo animação. Assim, eu converso com jovens. Daqui para frente, a cada dia, os arquivos serão menos necessários e a verdade vai aflorar com outras tecnologias.

Ana Rosa está negociando caminhos de distribuição para "Brizola - Anotações Para Uma História". O longa escolhido pelo Estação para celebrar seu pai, "Nas Asas da Pan Am" tem voltagem política alta também, mas se articula mais pela seara da saudade, como se fosse um arrolado de memórias.

Macaque in the trees
Silvio Tendler em Moscou durante a realização de 'Nas Asas da Pan Am' | Foto: Divulgação

A partir de materiais produzidos em diversos momentos da sua trajetória, o autorretrato passa pelo jovem Tendler que, durante o autoexílio, nos anos 1970, viveu o sonho do socialismo com liberdade no Chile de Salvador Allende; estudou cinema na Paris dos rescaldos de 68; e quis tomar um café com Jean-Luc Godard, antes do semiólogo por trás de "Acossado" (1960) se mandar para a Suíça. Ainda um galeto ao belo canto, apaixonado por Glauber Rocha, o Silvio ainda moleque conheceu Portugal da Revolução dos Cravos e, de volta ao Brasil, imbuído pelo espírito de luta de nossos patrícios, assumiu o cinema como sua metralhadora. Feito um globetrotter, ST esteve em Cuba, na União Soviética e na Alemanha. Passeou por esses cantos todos durante a Guerra Fria, registrando mundos que não existem mais.

"O conhecimento do passado é essencial para o futuro", disse Tendler ao Correio, quando finalizou o .doc sobre Brizola. "A vida não é uma folha de papel em branco. Desde que saímos do útero, estamos rodeados de informação sobre o que veio antes. A partir delas, a gente cria novas tecnologias, novos dispositivos teóricos e práticos. Como eu venho de uma geração libertária, preciso me relacionar objetivamente com os materiais históricos e, a partir deles, criar uma dialética".

Ao partir, no dia 5, Tendler deixou inacabado um filme sobre Pontos de Cultura, que estava em gestação, mas conseguiu emplacar uma série de filmes no streaming, sobretudo na já citada Amazon, onde está seu seminal "Utopia e Barbárie", de 2010, e "Em Busca de Carlos Zéfiro" (2020), uma aula de irreverência.