Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Amado seja Jorge

'3 obás de Xangô' descreve a amizade entre Jorge Amado, Carybé e Dorival Caymmi e que ajudou a forjar a identidade cultural baiana | Foto: Divulgação

Tinha um par de longas brasileiros de passagem pela Croisette quando o baiano Jorge Amado (1912-2001) integrou o júri do Festival de Cannes, 40 anos atrás, pouco depois de ter publicado "Tocaia Grande": na Semana da Crítica havia "A Marvada Carne", de André Klotzel, enquanto "O Beijo da Mulher Aranha" disputava a Palma de Ouro. O sucesso de Hector Babenco (1946-2016) não passou sem vitórias pelo time de jurados, no qual o autor de "O País do Carnaval" fez valer sua autoridade (literária) de pensador da cultura: William Hurt (1950-2022) deixou o balneário com o prêmio de Melhor Ator - e, meses depois, ganhou o Oscar.

Antes disso, em 1977, um outro festival tamanho GG, a Berlinale, exibiu, na competição oficial pelo Urso de Ouro, a adaptação de um dos exercícios narrativos seminais do escritor: "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018). Naquele ano, "Dona Flor e Seus Dois Maridos", que também nasceu da Bahia de Jorge, passou pelo Festival de Taormina, na Itália, onde ganhou a láurea especial do júri. Era um tempo de euforia para o prosador nascido em Itabuna, que fez de Salvador e Ilhéus terrenos imortalizados nas letras, em romances publicados em 52 países, com tradução para 48 idiomas e dialetos.

Houve um tempo em que o cinema e a TV pensavam em Amado o tempo todo. Esse tempo se materializa uma vez mais com a chegada de "3 Obás de Xangô" ao circuito.

O troféu Redentor de Melhor Documentário do Festival do Rio, somado a prêmios na Mostra de São Paulo e na Tiradentes, abriu caminhos para o filme de Sergio Machado, que aborda a relação de Amado com dois outros orixás encarnados: o artista plástico Carybé (1911-1997) e o músico Dorival Caymmi (1914-2008).

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Jorge Amado, Carybé, Zélia Gattai e Mãe Pepita em imagem resgatada pelo doc. '3 Obás de Xangô' | Foto: Divulgação

Sucesso por onde passa, o .doc revive a amizade entre os três pensadores do Brasil, para os quais a arte era canal de expressão da espiritualidade, numa conexão direta com o candomblé. Segundo Machado, que batizou seu filho em tributo a Jorge, aquele pedacinho do Nordeste era "um país da delicadeza". Há 15 anos, o cineasta levou "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'Água" (publicado por Amado em 1961) ao cinema, com Paulo José (1937-2021) no papel central.

"A obra de Jorge se confunde com a vida, e é uma obra marcada pela generosidade", diz Sergio ao Correio da Manhã. "O Jorge ajudava Deus e o mundo na Bahia. Eu faço cinema hoje porque um dia ele pediu para ver o meu filme 'Troca de Cabeça'. Essa generosidade dele está no '3 Obás de Xangô'. O filme foi bem nos festivais e tem emocionado plateias por ter essa bomba de afeto que o Jorge era. Sua história com seus amigos chega num momento em que a gente está vivendo uma polarização no mundo. Todo mundo acaba sendo tocado ao ouvir Jorge dizer que 'sem amor não vale a pena viver' e lembrar que 'a amizade é o sal da vida'. A casa dele era aberta a todo mundo, de Jean-Paul Sartre e Pablo Neruda a Mestre Pastinha e Dona Olga do Alaketu. Aos domingos, as portas de seu lar estavam abertas, com uma mesa farta oferecida a quem chegasse".

A última vez que o cinema nacional adaptou Amado pra telona foi em 2017, quando um novo "Dona Flor..." (hoje na Netflix) chegou ao circuito, com Juliana Paes, Marcelo Faria e Leandro Hassum. A versão anterior do triângulo metafísico entre a quituteira Florípedes, o farmacêutico Teodoro e o Zé Pelintra chamado Vadinho - encarnados por Sonia Braga, Mauro Mendonça e José Wilker - estreou em 1976 e vendeu 10,7 milhões de ingressos. Está apontado para voltar ao circuito nesta quinta, embora possa ser visto, hoje, no Globoplay.

Em agosto, a Festa Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô), em Salvador, serviu de sede para o lançamento de "Cartas: Dias Gomes - Jorge Amado", que apresenta cartas trocadas entre o romancista por trás de "Tieta" e o autor de telenovelas e dramaturgo que nos deu "Roque Santeiro". É uma prova de que o legado do artesão da palavra segue eufórico, como a Bahia de suas histórias... a Bahia dos "3 Obás de Xangô".