Com mais uma sessão no Canadá agendada para quarta-feira, "Franz" foi uma das sensações do TIFF-Festival de Toronto no fim de semana, o que amplia seu cacife na competição pela Concha de Ouro de San Sebastián (agendada de 19 a 27 de setembro), à luz das destrezas de sua realizadora, Agnieszka Holland, nas artimanhas da direção. Aos 76 anos, a diretora de "Eclipse de uma Paixão" (1995), com o jovem Leonardo DiCaprio no papel do poeta Rimbaud, renova seu prestígio com uma cinebiografia de outro mito das letras, Franz Kafka (1883-1924), ao mesmo tempo em que se espalha pelas plataformas de streaming.
Concebido como um mosaico caleidoscópico, o longa-metragem que tem tudo para leva-la ao Oscar - a julgar pelas críticas elogiosas recebidas em terras canadenses - acompanha a marca que o autor de "A Metamorfose" deixou no mundo, desde seu nascimento na Praga do século XIX até sua morte na Viena pós-Primeira Guerra Mundial. "Quem tem dor não pensa em política, mas a política pensa naqueles que fazem doer", disse Agnieszka, ao Correio da Manhã, ao iniciar o projeto.
A proporção entre as palavras escritas por Kafka e as narrativas publicadas sobre ele é (hoje) estimada em um para 10 milhões. Nascido em Praga, no fim do século 19, em uma família judia tcheca de classe média (que falava alemão e iídiche), Kafka escreveu romances e contos ao longo de seus 40 anos. "O Castelo" (1926) e "O Processo" (que completa 100 anos em 2025) estão entre seus exercícios criativos de maior relevância. O que a cineasta tenta realizar, ao revisitar a escrita dele, é reproduzir a Europa que gerou um escritor daquela envergadura literária, contando com o talento do ator Idan Weiss no papel central.
É da natureza de Agnieszka promover a autopsia em corpo vivo do continente em que nasceu. Embora evoque o cinema dos anos 1950, com um classicismo um tanto incompatível com a agilidade das narrativas destes tempos de streaming, "A Sombra de Stalin" ("Mr. Jones", 2019), um dos maiores sucessos recentes da artista, registra sua inquietação geopolítica. A produção pode ser vista hoje na Prime Vídeo, da Amazon. Lançado no Velho Mundo, em meio à pandemia como um libelo de resiliência, o filme foi indicado ao Urso de Ouro de Berlim, mas demorou a estrear. Sua trama faz uma visita a um império do efêmero ideológico (disfarçado de utopia política), a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1922-1991), registrada nos cliques e nas palavras do jornalista galês Gareth Richard Vaughan Jones (1905-1935).
A URSS por ela retratada parece um thriller de horror. "Minha indignação não é contra um projeto de pátria ou contra um sistema socialista de governo, mas, sim, contra os crimes cometidos por Stalin para silenciar aqueles que se opuseram a seus ideais e contra toda uma população que amargou um dos mais cruéis castigos: a fome", disse Agnieszka ao Correio da Manhã.
Seu protagonista, o ator londrino James Norton arranca elogios na pele do repórter idealista que, após ter entrevistado Hitler (antes dos planos de dominação global do Früher) decide embarcar para a URSS atrás de uma exclusiva com Stalin. A dica de que há uma crise de fome em solo ucraniano arrasta Gareth até lá, onde descobre um esquema de corrupção com a bênção stalinista por trás da escassez de alimentos que mata milhares de pessoas.
"Não consigo imaginar um delito institucional pior do que esse, naquela região, no século XX, e dificilmente posso pensar um crime político tão grave, fora o Holocausto. Hoje, depois que Stalin posou entre os vencedores da II Guerra, seus atos são relativizados por uma parte da opinião pública russa, mas ele criou um zoológico humano", disse Agnieszka, que concorreu ao Oscar de melhor roteiro, em 1992, por "Filhos da Guerra", seu maior sucesso. "Não me peça para ser benevolente com um episódio que usa ideologias como desculpa para violentar a dignidade humana".
Na Amazon é possível ver "Zona de Exclusão" e "Charlatão", um drama sobre os abusos da Guerra Fria. "Existe uma dimensão de impunidade nos governos totalitários do passado, assim como nos de agora, que precisa ser revelada e escancarada. Eu regi numa Europa que institucionalizou o silêncio como legado de um sonho. É hora de falarmos", disse a cineasta, que saiu de Berlim, em 2017, com o troféu especial dado a narrativas capazes de desbravar fronteiras da linguagem audiovisual por "Rastros" ("Pokot"). "O medo encontra na negligência e na omissão dois parceiros fiéis".
Nos anos 1980, depois de rodar "Colheita Amarga", produção alemã indicada ao Oscar, Agnieszka foi importada pelo cinema anglo-americano, tendo trabalhado também na França. Nessa internacionalização de seu talento e de sua estética, ela rodou cults como "Complô contra a liberdade" (1988), com Christopher Lambert, o eterno Highlander; e "O Segredo de Beethoven" (laureado com um prêmio do Círculo de Roteiristas da Espanha, em San Sebastián, em 2006). "Vou atrás de dramas afetivos e de histórias sobre como resistir", explica a realizadora. "Filmo para estudar a condição humana e desmistificar a ideia de heróis inquebráveis".