Pleno de trabalhos como ator, aos 87 anos, num retorno às raízes de uma carreira responsável por uma revolução no modo de se pensar a televisão e o conceito de cinema popular no país, Daniel Filho acaba de dirigir um longa-metragem novo, revivendo um Nelson Rodrigues (1912-1980) que rendeu às telas um fenômeno... de bilheteria, crítica e consagração internacional. Dono de um Urso de Prata, dado pelo júri da Berlinale em 1973, mesmo ano em que venceu o Kikito de Melhor Filme no Festival de Gramado, "Toda Nudez Será Castigada" levou 1.737.151 pagantes às salas de exibição. O cult dirigido por Arnaldo Jabor (1940-2022) teve tamanho êxito que sempre se pensa nele - e no desempenho de sua estrela, Darlene Glória, no papel da garota de programa Geni - quando a peça teatral de Nelson, que o inspirou, vem à tona.
Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã
Joga holofote na Geni
Daniel Filho: 'Nelson Rodrigues, como todos os grandes autores, permanece'
A estreia desta obra-prima de Nelson Rodrigues nos palcos ocorreu em 1965, com Cleyde Yáconis (1923-2013) como Geni, prostituta que mexe com os brios de Herculano, um viúvo moralista, pai do introspectivo Serginho e irmão de um bon-vivant, Patrício. É essa raposa, cheia de dívidas, quem aproxima seu mano mais velho de Geni, detonando uma paixão que causa tétano sentimental por onde passa, devassando a hipocrisia da sagrada família brasileira - aqueles Minions que elegem falsos messias.
Para reviver essa trama, Daniel fez um filme P&B, à moda dos clássicos noir, fotografado por um Felipe Reinheimer no apogeu de seu trabalho com a luz, em sintonia com a direção de arte de Yurika Yamasaki. Confiou Geni à premiada Hermilla Guedes (destaque do esperado "O Agente Secreto") e chamou (ou foi chamado por, como explica na entrevista a seguir) Otávio Müller para viver Herculano. Seu ator assinatura, Guilherme Fontes, faz Patrício, no que promete ser uma cálida atuação, assim como a de Caio Manhente, intérprete de Serginho. Já o emblemático trio chamado As Tias é encarnado por Solange Couto, Cininha de Paula e Carla Daniel (filha do cineasta).
"Daniel Filho é uma escola viva e esse seu 'Toda Nudez..." transcende o que a gente espera de um bom Nelson, tornando-o mais forte", diz Claudia Bejarano, produtora associada do longa, que foi filmado no Polo Rio Cine e Vídeo, em Jacarepaguá.
A convite do realizador responsável por êxitos como "A Dona da História" (2004) e "Se Eu Fosse Você" (2005), o Correio da Manhã visitou as filmagens, numa sequência nas raias do trágico. "O uso de sombra que a gente pensou para a fotografia, a partir da ideia do Daniel, transforma o cenário da casa de Herculano como se ela fosse uma visita a um inconsciente fraturado, como se fosse o cérebro da Geni se apagando aos poucos", disse Reinheimer. "Daniel buscou o que existe de feminino no Nelson e imprimiu essa força em cena".
Folheando registros oficiais da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e do portal Filme B acerca dos longas-metragens brasileiros que passaram da marca de 1 milhão de ingressos vendidos, o nome Daniel Filho aparece oito vezes (!) na lista. Ele assina a direção de arrasa-quarteirões rodados entre os anos 1970 e os anos 2010. Até Nordestern com Didi Mocó ele dirigiu: "O Cangaceiro Trapalhão", de 1983. Passadas cinco décadas cravadas de um desses êxitos dele ("O Casal", visto por 1 milhão e 300 mil pagantes em 1975), o cineasta que virou o século com status de Midas, por fabricar um blockbuster atrás do outro, analisa a experiência de filmar "Toda Nudez Será Castigada" neste papo com o Correio.
Sua volta à realização acontece num momento de múltiplas conquistas para o nosso cinema no exterior, pós-Oscar, pós-prêmios em Cannes e Berlim, em que se discute regulamentação do streaming. Como você avalia esse cenário?
Daniel Filho - Optei por fazer uma nova versão de uma peça teatral num momento em que os nossos cineastas mais velhos ou estão partindo ou estão combalidos, enquanto os mais novos, mesmo talentosos, são pegos por dificuldades diversas. Nosso cinema sempre viveu em ondas, como o mar. Quando estávamos indo bem, veio o linchamento imposto pelo governo anterior. Aí, no governo Lula, voltamos a formar uma frente boa, lutando para colocar pessoas nas salas de cinema para nos ver. Mas estamos desamparados, em parte porque o nosso Ministério da Cultura parece não saber como a atividade cinematográfica funciona. É difícil aparecer todo dia um filme bom como "Malu" (de Pedro Freire). Os streamings estão produzindo, mas, com raras exceções, o que fazem não é bom. Isso acontece porque, na mentalidade atual dos streamings, os artistas não conseguem acesso para falar com quem produz, quem decide. Falamos com intermediários. Cheguei a ter um projeto aprovado num streaming, mas tive que passar por reuniões estranhas, com pedidos que eu custava a entender. Pensei então em refazer um longa de que gosto muito e que filmei há 50 anos, "O Casal", com o (José) Wilker e a Sonia Braga. Em meio a dificuldades para levantar as ideias, resolvi fazer um Nelson, para filmar do meu jeito.
Que simbolismo circunda "Toda Nudez Será Castigada", sobretudo em relação ao filme dos anos 1970?
"Toda Nudez..." não é um texto naturalista, é over, é ópera. Há uma frase da Geni assim: "Herculano, aqui quem te escreve é uma morta". Isso é uma ária. É Verdi, é Bizet. A partir desse conceito, eu bolei todo o visual da minha versão. Tem uma protagonista que transa com um pai e com o filho dele. Tem um Iago - o irmão de Herculano, Patrício -, feito pelo Guilherme Fontes. Li muito sobre o Iago do Shakespeare (da peça "Othelo") para criar essa figura, numa releitura para a qual revi muito filme noir. Mas não foi qualquer noir, não. Foi Orson Welles e o Bergman de "A Hora do Lobo".
Qual é o desafio de lidar com o texto de Nelson Rodrigues e seus arquétipos num momento de forte patrulha em relação a representações, ao uso de palavras canceladas?
Nelson Rodrigues, como todos os grandes autores, permanece. Ele pode ser lido e relido porque suas tramas são profundas e seus personagens são fortes. "Toda Nudez..." fala de prostituição, fala de religião, fala de fidelidade. Se você pega um filme seminal como "Doze Homens e Uma Sentença", de Sidney Lumet, feito no fim dos anos 1950, verá que ele ganhou adaptações em outros países que não os Estados Unidos, refeito em línguas que não são o inglês. É o universo de emoções por trás das deliberações de um júri que o torna atemporal e universal. Nelson é assim. É vivo. Se eu mexi em coisas ao filmar "Toda Nudez..."? Bom, eu abri espaço para as tias. Eu pensei o lado meio Iago do Patrício. Eu analisei a questão homossexual que existe no filho de Herculano, o Serginho, com mais atenção e complexidade.
Qual é a experiência de voltar ao set, na direção, neste momento em que tem emplacado uma série de trabalhos como ator?
Set é o lugar em que eu mais gosto de estar na vida e eu não me aposentei. Acham que eu estou morto, mas estou vivo e apto. Vou fazer 88 anos no fim do mês (dia 30) e fazer esse filme fez eu me sentir livre. Fiz tudo do jeito que eu quis, sem precisar discutir elenco com ninguém, filmando a peça, com todo o poder que ela tem. Adaptamos só aquilo que funcionava bem como teatro, mas não segurava como enquadramento de cinema, em closes. Não queria atores que aparecessem mais do que os personagens e encontrei um time incrível.
Como foi a composição do elenco?
Há uns quatro anos, fui a uma festa na casa do Caetano (Veloso) e o Otávio Müller estava lá. Ele já sabia que eu estava querendo filmar o "Toda Nudez...". Ao cruzar comigo, ele me segurou e disse: "Daniel, eu sou o Herculano!". Olhando para a figura dele e lembrando do grande ator que ele é, eu parei, pensei e disse: "Você tem razão". Ele tinha mesmo. Herculano não poderia ser um Fagundes fingindo ser deprimido. Precisava do ator que o Otávio é e eu devo a escalação da Hermila a ele. Foi uma sugestão dele, que fez uma série ("Segunda Chamada", da Globo) com ela e me falou da foça que Hermila tem em cena. Eu pedi que ela viesse do Recife para cá para uma leitura. Ela sentou na minha casa e leu algumas cenas. Logo que começou a ler, eu a interrompi, pedi desculpa por tê-la feito vir até o Rio e disse: "você está no filme". Preservei o sotaque dela, que mexeu nos diálogos para tirar o carioquês das falas da Geni. Queria o sotaque de alguém que veio de fora, do Nordeste, tentar a vida aqui.
Que arquétipo existe na figura da Geni?
Está no texto do Nelson que ela quer ter um apartamentinho. Deu a entrada e tem que pagar por ele. Tem uma hora em que diz: "Outra suruba eu não faço". Ela não é uma "putanheira", nem é uma pessoa ingênua. Ela é uma profissional, mas é uma pessoa que ama. A confiança que a Hermila me passou mostra a força que a personagem alcançou.
Um de seus maiores sucessos, a franquia "Se Eu Fosse Você" (2005-2009), completa agora 20 anos e ganha uma parte três, com direção de Anita Barbosa. Como encara esse projeto?
Eu autorizei essa parte 3, fui visitar o set um dia e fiquei feliz de ver a Anita, que trabalhou comigo quando estava começando, no posto de diretora. Não há problema em retomarem o que eu já fiz. Estúdio me dá um prazer imenso.