Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Viva o amor por Tsai Ming-liang

'Vive L'Amour', mosaico da vida numa vila em Laos, recebeu o Leão de Ouro de 1994 | Foto: Divulgação

 

Nesta semana em que atribuiu ao cinema brasileiro uma honraria histórica inédita, ao anunciar "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, como o ganhador do Grand Prix Fipresci de 2025, a Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica aproveitou sua presença no Festival de Veneza para prestar um tributo a um pilar da Ásia nas narrativas audiovisuais, seja em filme, seja em vídeo: o diretor Tsai Ming-liang. Coube a ele o Prêmio de Carreira FIPRESCI 100, numa referência ao fato de a associação - que congrega jornalistas de todo o mundo - ter se tornado centenária em 2025.

Envolvido em projetos de um radicalismo experimental pleno, dignos da videoarte, porém concebidos para salas de projeção, como "Abiding Nowhere", o malaio radicado em Taiwan não se aventura mais por narrativas de jornada como "Vive L'Amour", que lhe rendeu o Leão de Ouro em 1994. Na quinta-feira, essa produção voltou ao Lido, em versão restaurada, numa homenagem à sua relevância para as representações do desejo. Sua trama cria um mosaico da vida cotidiana em uma vila do Laos, registrando rotinas em edifícios, fazendas, mercados e tempos religiosos. Paralelamente à sua projeção, a terra das gôndolas estreia nesta sexta um longa inédito dele, que pode ser descrito como .doc: "Back Home".

Pela justifica da Federação, o prêmio foi atribuído ao diretor de 67 anos graças à "compreensão que Tsai tem do cinema, não apenas como entretenimento e prática de lucro, mas como forma de arte que requer tempo, cuidado e meditação. Sua liberdade em desafiar restrições e definições estereotipadas fizeram dele o artista ideal para ser homenageado pela nossa Federação em seu centésimo aniversário".

Há 12 anos, Veneza deu o Grande Prêmio do Júri a ele por "Cães Errantes", que, ao ser exibido no Rio de Janeiro, no Cine Joia, dividiu plateias, entre vaias e ovação. É uma reação comum ao que ele faz. Já ocorreu isso em Cannes e Berlim, onde sempre há espaço para o realizador, que estreou nos longas com "Rebeldes Do Deus Neon" ("Qing Shao Nian Nuo Zha", 1992). Crônica de costumes sobre dilemas de juventude, essa produção passou por festivais em Toronto, Tóquio, Turim e Taipei, terra que serve de base de operações para sua vida e sua arte. O que faz hoje, devotado a pesquisas sobre realidade virtual, não põe na lixeira o que fez no início de uma aclamada carreira, coroada mundialmente com 65 troféus, entre eles o Leopardo Honorário do Festival de Locarno (na Suíça). Tsai respeita sua caminhada Sua meta, em sua andança, é "conseguir se perder".

"Não sou mais jovem, percebo ser incapaz de ter a força para rodar certos planos que fazia no passado, mas sinto que meu interesse hoje se concentra em gestos que desindustrializem o cinema, pensando sempre na tela grande", disse Tsai ao Correio da Manhã, em Locarno.

A consagração de seu "O Buraco" em Cannes, de onde saiu com Prêmio da Crítica em 1998, foi um passo adiante no estabelecimento de uma carreira sempre interessada em pensar cidades e suas solidões. "Eu faço filmes silenciosos porque os barulhos da cidade nos servem como uma trilha sonora", disse Tsai ao Correio na Berlinale de 2020, ao ganhar o troféu Queer Teddy por "Days".

Essa dimensão silenciosa que persegue hoje é o eixo autoral de seus filmes. A quietude é a marca de "Back Home", que terá sessões também no sábado, às vésperas do encerramento de Veneza. Seu protagonista, Anong é um dos muitos laosianos que deixaram sua terra natal. No início de 2025, ele viajou para rever sua família. Partir parece ser seu destino.

"Falo de homens em instâncias distintas da linguagem, que não falam a mesma língua, mas se encontram", explicou o cineasta, em Locarno.

Há um ano, ele tem rodado eventos acompanhando a exibição da cópia nova de "O Sabor da Melancia" (2005), que comemora duas décadas de sua estreia ainda pontuado de ousadia. É um ensaio sobre corpo, sexo e querer, que brinca com a tradição do musical asiático. "Abiding Nowhere" vai por uma margem oposta. Nele, Kang-Sheng passa todo o tempo a trafegar por Washington, a partir de um mergulho num rio, em área silvestre, onde imerge, emerge e flutua. Sua cabeça raspada e sua túnica rubra humilde lhe dão um perfil de monge.

"A partir de 2017, eu passei a me expressar modelos de captação de imagens que não me permitem fazer closes e outras conjugações dos verbos cinematográficos clássicos, mas me habilita a fazer descobertas no terreno da textura", disse Tsai. "É um futuro possível. Para chegar a ele, preciso preservar o passado. Preciso manter meus filmes de ontem vivos".

Faltando horas para Veneza terminar, uma produção tunisiana dirigida por Kaouther ben Hania, "The Voice of Hind Rajab", desponta com certo favoritismo para a premiação apoiada numa recriação da violência em Gaza. A trama volta no tempo até 29 de janeiro de 2024. Ali, voluntários da Cruz Vermelha recebem uma chamada de emergência: uma menina de seis anos está presa em um carro sob fogo cruzado, implorando por socorro. Enquanto tentam mantê-la na linha, eles fazem tudo o que podem para enviar uma ambulância até ela. Seu nome era Hind Rajab. Daí já se imagina a comoção. Neste sábado o júri presidido pelo diretor Alexander Payne ("Os Rejeitados"), com Fernanda Torres no time votante, dá seu veredicto. Há muita chance de Guillermo Del Toro e François Ozon serem premiados por adaptações literárias, com versões personalíssimas de "Frankenstein" e "O Estrangeiro".