Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Patricia Mazuy: 'É mais difícil ser livre na riqueza do que na pobreza'

Patricia Mazuy, cineasta | Foto: Alexandre Ean/Divulgação

 

Cults como "Rififi" (1955) e "O Samurai" (1967) são provas históricas do quanto os franceses amam o filão policial - apelidado por eles de polar - e o quanto o cinema daquela pátria busca construir uma cartilha muito pessoal em torno do gênero (do qual Hollywood usou e abusou), conectando-o com temas políticos ou existenciais - o que o é caso da obra de Patricia Mazuy. A diretora é hoje uma diva dessa linhagem narrativa, elogiada nas páginas da revista "Cahiers du Cinéma" (Bíblia do audiovisual) pela força imagética de sua recorrente imersão nos códigos das narrativas criminais.

Consagrada por "Paul Sanchez Está De Volta" (2018), ela refina seu estilo de retratar a Lei - e a bandidagem - no doloroso "A Prisioneira de Bordeaux ("La Prisonnière De Bordeaux"), sensação da Quinzena de Cineastas do Festival de Cannes de 2024 que caminha para um mês em cartaz no Brasil. Seu roteiro propõe um ensaio sobre alteridade no bastidor do universo carcerário.

Isabelle Huppert interpreta Alma Lund, uma mulher de classe alta que vive sozinha desde a prisão do marido. Num dia de visita a ele, conhece Mina Hirti (Hafsia Herzi), uma jovem mãe que foi visitar o companheiro, mas, por questões burocráticas, não poderá vê-lo e deve voltar no dia seguinte. Ela mora longe - em uma cidade a três horas de distância. Alma simpatiza com ela e oferece estadia em sua casa. Começa aí uma amizade improvável, que toma contornos inesperados, num filme que discute violências econômicas.

"Ando atenta à dificuldade de diálogo que as pessoas têm hoje em dia, num espaço silencioso quase intransponível, de onde vem a brutalidade", disse Patricia ao Correio da Manhã em entrevista via Zoom.

Em 2022, depois de concorrer ao Leopardo de Ouro de Locarno com "Boliche Saturno", a realizadora nascida em Dijon, há 65 anos, ganhou uma retrospectiva integral de sua obra no Festival de Mar Del Plata, na Argentina, o que aproximou sua filmografia da cinefilia latina. Na conversa a seguir ela analisa o simbolismo sociológico de "A Prisioneira de Bordeaux".

Qual é a linha moral que calça a relação entre Mina e Alma no seu filme?

Patricia Mazuy - Uma suspeita de que é mais difícil ser livre na riqueza do que na pobreza. Há uma luta de classes em algum lugar nesta narrativa, numa dramaturgia sobre amizade. Se o meu filme anterior, "Boliche Saturno", um thriller, aproximava-se do trágico, "A Prisioneira de Bordeaux" caminha numa direção melodramática, embora exista, na figura de Mina, espaço para o riso. Ei li muita literatura policial, que chamamos de polar na França, em especial Donald Westlake (auto de "O Corte"), o que me deu uma base de criação para esse universo.

A prisão seria uma espécie de terceira protagonista, além das personagens de Hafsia Herzi e de Isabelle Huppert?

A prisão é uma metonímia da liberdade. É um espaço social desumanizado em que as relações ocorrem sob vigilância. Reproduzi o ambiente carcerário que pesquisei em estúdio, a fim de criar uma quase fábula sobre o que o dinheiro compra. A solidão das duas mulheres principais vem do fato de elas também estarem presas, nas numa cadeia, mas no amor por seus maridos.

Como foi o trabalho com o fotógrafo Simon Beaufils, que virou seu parceiro habitual?

Temos uma dinâmica de criação que começou antes da filmagem, na busca por uma luz mais doce. Sempre que se fala de um universo carcerário, fala-se de muros, da barreira que separar os internos da sociedade. Queríamos espalhar uma sensação de confinamento que fosse além das grades do presídio.

Como a senhora avalia o sistema de produção na França hoje?

É mais fácil projetar um filme aqui do que em muitos outros países, em função dos apoios que temos, mas a chegada das plataformas digitais tem mudado o cenário.

A senhora participou do júri da competição de cineastas estreantes do Festival de Locarno, que coroou a canadense Sophy Romvari, pelo filme "Blue Heron". Como foi participar do evento suíço, que consagrou seu "Boliche Saturno", em meio ao desenvolvimento de um novo projeto?

Estou escrevendo um novo roteiro agora, mas foi excitante poder voltar lá sem o estresse de estar concorrendo, apenas para ver bons filmes. O problema com Locarno é que lá, por conta da moeda (o franco suíço), uma pizza custa o equivalente a 20 euros.