Assim que começou a desenvolver "Pinóquio", que lhe rendeu o Oscar de Melhor Animação em 2023 (e hoje está na Netflix), o mexicano Guillermo Del Toro comparou o boneco de pau ao Frankenstein da autora Mary Shelley (1797-1851). A analogia vinha do fato de ambos terem sido criados em resposta à carência (e à prepotência demiúrgica) alheia, sendo cobrados por um padrão de conduta que não condiz com a natureza que a Ciência lhes ofereceu.
"Gente fina, do tipo bonzinho não me interessa, pois eu cresci cercado de fábulas em que pessoas difíceis, de perfil torto, saem em uma jornada de autodescoberta, sempre pessoas de índole torta que precisam se tornar boas para serem amadas", disse o cineasta, no Festival de Marrakech, meses após a conquista do Leão de Ouro por "A Forma da Água" (2017).
Ali havia um monstro aquático... que se apaixonava por uma faxineira incapaz de falar. Agora, em seu novo longa, que pode assegurar um segundo felino dourado a Del Toro, o inventor Victor Frankenstein (Oscar Isaac) cria uma monstruosidade (encarnada pelo ator Jacob Elordi) para satisfazer seu desejo de ser Deus por um dia. A questão é saber que criatura é mais terrível: o ser alimentado por choques elétricos que tal cientista criou ou ele mesmo, Victor, em sua despótica ambição. "Este filme conclui uma pesquisa que, para mim, começou nos meus sete anos, quando vi pela primeira vez os filmes de Frankenstein de James Whale. Naquele momento crucial, senti um sobressalto de consciência: o terror gótico tornou-se minha religião e Boris Karloff, o meu Messias. A obra-prima de Mary Shelley está repleta de perguntas que queimam minha alma: perguntas existenciais, ternas, selvagens, sem saída, como só uma mente jovem pode fazer e às quais apenas os adultos e as instituições acreditam poder responder. Para mim, porém, apenas os monstros detêm a resposta para todos os mistérios. Eles são o mistério", poetiza Del Toro em depoimento ao site do festival veneziano que, de novo, pode fazer dele seu vencedor.
Há concorrentes fortes ("Coração de Lutador - The Smashing Machine", com Dwayne Johnson; "La Grazia", de Paolo Sorrentino; e "L'Étranger", de François Ozon), mas Del Toro chega à caça aos leões da Itália sintonizado com uma fase de apogeu plástico e dramatúrgico do horror como alegoria política. O melhor exemplo é o fenômeno de bilheteria "Pecadores", de Ryan Coogler, que escancara a luta antirracista por meio de vampiros. Em agosto, o Brasil produziu com a Romênia uma reflexão sobre as maldições econômicas do planeta baseada na figura do mais famoso bebedor de sangue da ficção: "Drácula", de Radu Jude, indicada ao Leopardo de Ouro de Locarno.
Paralelamente, outro cineasta de verve autoral, Luc Besson (de "O Quinto Elemento"), usava a lenda de Vlad Tepes, o empalador para discutir a finitude do corpo num contraponto à eternidade da alma no suntuoso "Drácula: Uma História de Amor Eterno". No início do ano, Robert Eggers ampliou o prestígio que adquiriu ao ser premiado em Cannes com "O Farol", em 2019, ao reviver "Nosferatu", de 1922, com dilemas existenciais da contemporaneidade.
Nesta quinta, o terror volta a inspirar debates geopolíticos com a chegada de "Invocação do Mal 4: O Último Ritual", novo capítulo do icônico universo cinematográfico idealizado pelo ás do assombro James Wan ("Jogos Mortais"), baseado nas ações dos renomados investigadores paranormais Lorraine e Ed Warren. Vera Farmiga e Patrick Wilson retornam aos papéis desse casal de inimigos do Capeta, que já enfrentaram o trem-ruim A Freira e a boneca Annabelle. A ameaça da vez é uma infestação diabólica. Desde 2013, essa franquia faturou US$ 848 milhões. O quarto episódio pode virar um dos maiores faturamentos de 2025.
Na reta final de Veneza, uma produção tunisiana dirigida por Kaouther ben Hania, "The Voice of Hind Rajab", desponta com certo favoritismo para a premiação apoiada numa recriação da violência em Gaza. A trama volta no tempo até 29 de janeiro de 2024. Ali, voluntários da Cruz Vermelha recebem uma chamada de emergência: uma menina de seis anos está presa em um carro sob fogo cruzado, implorando por socorro. Enquanto tentam mantê-la na linha, eles fazem tudo o que podem para enviar uma ambulância até ela. Seu nome era Hind Rajab. Daí já se imagina a comoção. Sábado o júri presidido pelo diretor Alexander Payne ("Os Rejeitados"), com Fernanda Torres no time votante, dá seu veredicto.