Leonardo Martinelli: 'O Carnaval simboliza a rara oportunidade de a cidade pertencer, de fato, ao povo'

Com sessão em Gramado nesta terça-feira (19), "Samba Infinito" é um poema em pílula sobre o carnaval, que tem Camila Pitanga em cena.

Por Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Leonardo Martinelli, cineasta

Três meses após ganhar uma das vitrines mais prestigiosas do planisfério cinéfilo - a Semana da Crítica do Festival de Cannes - e levar o Rio de Janeiro à Croisette, Leonardo Martinelli, um carioca da Zona Norte, aporta seu novo (e belíssimo) filme, "Samba Infinito" nas telas gaúchas. O Festival de Gramado será a vitrine de estreia de seu novo experimento narrativo, que conta com Gilberto Gil no elenco. Foi lá mesmo, na Serra Gaúcha, que ele encheu seu currículo com troféus Kikitos pelo musical metafísico "Fantasma Neon", em 2022.

Um ano antes, a produção de título espectral testou a sorte na competição Pardi di Domani, do Festival de Locarno, em solo suíço, e saiu de lá com o prêmio principal, numa vitória histórica para o Brasil. Não por acaso, ele foi chamado para Locarno de novo, em 2023, para lançar por lá "Pássaro Memória" - também em concurso.

Com sessão em Gramado nesta terça-feira (19), "Samba Infinito" é um poema em pílula sobre o carnaval, que tem Camila Pitanga em cena. Alexandre Amador é o protagonista dessa coprodução franco-brasileira, rodada com apoio da RioFilme, CNC e France Télévisions, que marca a estreia do jovem ator Miguel Leonardo. A trama desenrola-se durante a folia de Momo no Rio. Em paralelo à chuva de confete e serpentina, um gari enfrenta o luto pela perda da irmã enquanto cumpre as suas obrigações de trabalho. Em meio à alegria dos blocos de rua, ele encontra uma criança perdida e decide ajudá-la. O encontro deflagra fricções entre duas entidades demasiadamente humanas: a lembrança e a imaginação. As duas ilustram o papo a seguir

O que Gramado deu de mais valioso ao teu "Fantasma Neon" e que valor simbólico o festival gaúcho tem no imaginário do cinema?

Leonardo Martinelli: Meu curta-metragem "Fantasma Neon" estreou mundialmente no Festival de Locarno em 2021, onde ganhou o Leopardo de Ouro de curta-metragem (na seção Pardi di Domani). A emoção foi intensa, e eu tinha uma certeza: queria que a estreia nacional fosse na competição do Festival de Gramado. Ambos os festivais acontecem em agosto. Gramado começa enquanto Locarno está encerrando, mas havia um problema. Quando recebi a seleção de Locarno, as inscrições de Gramado já estavam fechadas há tempos. Então, tomei uma decisão arriscada: segurar a estreia nacional de "Fantasma Neon" por um ano inteiro, para que a primeira exibição no Brasil fosse na competição do Festival de Gramado, em 2022. O risco valeu a pena: não só fomos selecionados, como ganhamos cinco prêmios, incluindo o de Melhor Filme do júri oficial, de forma unânime. A sessão de estreia de "Fantasma Neon" em Gramado foi histórica. Abrimos para a primeira exibição de "Marte Um" no Brasil - um filme que deixou grande impacto no imaginário do cinema nacional nos últimos anos. Gramado é um lugar especial para um filme brasileiro, e estou muito animado para ter a estreia brasileira de "Samba Infinito" lá, depois da passagem pelo Festival de Cannes, mais cedo este ano.

Locarno acaba de encerrar sua edição de número 78 e você concorreu lá duas vezes. Teve a vitória do "Fantasma Neon", em 2021, e a participação de "Pássaro Memória", em concurso, em 2023. Em ambas as ocasiões, o evento suíço esteve sob a curadoria de Giona A. Nazzaro. Qual foi o maio aprendizado que Locarno te trouxe?

O Festival de Locarno mudou minha vida. As portas que se abriram para mim depois do prêmio possibilitaram grande parte da construção da minha carreira atual. O que mais me encanta no festival é que, a cada edição em que participo, minha noção do que é possível experimentar dentro de uma sala de cinema se expande. Locarno é, sem dúvida, o melhor amigo do cinema autoral de vanguarda.

Que carnaval é esse que você leva de Cannes para a Serra Gaúcha? O que significa ter Gilberto Gil na telona no Palácio dos Festivais?

Viver o carnaval de rua no Brasil é uma experiência intensa, e compreensivelmente não é para todos. As ruas e praças são tomadas por corpos, celebração, música e fantasia. Para mim, o carnaval simboliza a rara oportunidade de a cidade pertencer de fato ao povo, algo que, infelizmente, não acontece o tempo todo. Em "Samba Infinito", esse espírito aparece em contraste: de um lado, a sobriedade e o labor de um trabalhador que cuida das ruas; do outro, a cidade mergulhada em seu estado mais onírico. Essa tensão se soma à trajetória de alguém atravessando um luto profundo, refletindo sobre como o próprio espaço urbano pode amplificar a intensidade das emoções. A nostalgia que permeia o filme não nasce tanto do desejo de reviver o passado, mas de uma espécie de fricção poética: a beleza e a violência da impermanência. O fim do carnaval, a ausência de quem partiu e até a urgência de ajudar uma criança perdida. Tudo se mistura. Gilberto Gil foi inspiração não apenas pela música, mas pela filosofia: sua visão do Brasil acolhe a beleza na contradição, e isso norteou profundamente o filme.