Brasil em tempo de Peréio

Signo de uma irreverência sem frescuras, o astro, morto em 2024, enche o circuito nacional de saudades com o regresso do cult 'Iracema, Uma Transa Amazônica' às telas

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Dono de uma das vozes mais possantes de nosso cinema, Paulo César Peréio partiu em 2024, sem pedir licença à nossa saudade

Quando se digita o nome de Paulo César Peréio (1940-2024) nos buscadores dos streamings no ar hoje no Brasil, cults e clássicos saltam ao nosso olhar. A grade da Netflix hoje conta com os fenômenos de bilheteria "A Dama do Lotação" (1978) e "Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia" (1977); a Prime Video da Amazon exibe "Boca" (2012) e "A Extorsão" (1975); na Globoplay, rola vê-lo em "Tudo Bem" (1978) e na minissérie "Presença de Anita" (2001); e a MUBI oferece "O Homem do Ano" (2003).

No circuito exibidor de 13 estados do país, entre os quais o Rio de Janeiro (via Estação NET Rio), encontra-se a partir deste fim de semana uma versão restaurada (em 4K) de um dos mais prestigiados marcos da carreira do ferrabrás gaúcho, que partiu sem pedir licença à saudade da gente (como era de seu feitio): "Iracema, Uma Transa Amazônica" (1974). Dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, esse clássico on the road entrou em restauração na Alemanha, sob a coordenação técnica de Alice de Andrade, com o apoio do CTAV, Mnemosine, IMS, PUC Rio, Instituto Guimarães Rosa e da Cinemateca Brasileira.

Passou na Berlinale deste ano, em fevereiro, compondo num bonde de 12 filmes brasileiros e três séries nacionais, radicado na seção Forum Special, sob a curadoria de Barbara Wurm. Em sua trama, a adolescente indígena Iracema (Edna de Cássia) deixou sua família e mal consegue sobreviver trabalhando como garota de programa na cidade de Belém do Pará.

Na labuta do sexo pago, ela conhece o caminhoneiro Tião Brasil Grande (Peréio, monumental em cena). Não há um pingo de modos em Tião, um tipo inescrupuloso e falastrão que faz apologia do Milagre Econômico apregoado pela ditadura militar nos anos 1970. Leva Iracema para a rodovia com ele, numa jornada de múltiplos prazeres e injustiças sociais.

Divulgação - Paulo César Peréio com Edna de Cássia no icônico 'Iracema, Uma Transa Amazônica', que chega ao circuito exibidor de 13 estados com cópias restauradas

Vencedor de quatro troféus Candangos no Festival de Brasília (entre eles os de Melhor Filme e Atriz, dado a Edna), "Iracema, Uma Transa Amazônica" é um misto-quente de documentário e ficção que galvanizou a debochada ferocidade da persona de Paulo César, cujo sobrenome à vera é Campos Velho. Peréio é uma variação dos apelidos de infância "Nego Véio" e "Vevéio".

Este ano, além da passagem póstuma pela Berlinale, ele será visto (e aplaudido) em nossas salas de exibição na carreira comercial de "Brizola - Anotações Para Uma História", .doc de Silvio Tendler no qual dá depoimento. Ganhou ainda homenagem da Associação de Críticos do Rio de Janeiro (ACCRJ), por sua relevância para o nosso legado audiovisual.

 

Divulgação - Sonia Braga e Paulo César Peréio no fenômeno de bilheteria 'Eu Te Amo'

Nos sets, Peréio zoava com a fama de escroto que conquistou (e cultivou) depois de dar trabalho para muita, mas muuuuita gente. Um aposto sugestivo - "o homem que foi expulso de uma suruba por mau comportamento" - acompanhava o astro do blockbuster "Eu Te Amo" (1981) em seus porres, suas fungadas insólitas, suas imposturas, mas, sobretudo, em suas incursões sempre dionisíacas nos palcos, na TV e (sobretudo) na telona. Atravessou os mais variados movimentos estéticos do cinema brasileiro, amparado por seu vozeirão. Nenhuma voz de nossa indústria cinematográfica foi mais possante (e marcante) que a dele, ecoando para além de seus filmes, em locuções que fez, na publicidade e em mídias audiovisuais diversas.

Passou pelo Cinema Novo ("O Bravo Guerreiro"; "Terra Em Transe"), pelo Cinema Marginal ("Bang Bang") e pela Retomada ("Harmada"; "O Viajante"). Ganhou Kikitos, Candangos e o troféu Oscarito de Gramado, em seu Rio Grande do Sul natal, que coroou sua adorável impostura como forma particularíssima de combater a caretice nacional. Esse combate agora pode ser apreciado em tela grande.

Em 2023, o Festival do Rio e o Fest Aruanda, na Paraíba, acolheram "Peréio, Eu Te Odeio". Esse documentário cheio de galhofa sobre as excentricidades de Seu Campos Velho marcou a volta às telas do quadrinista Allan Sieber, que divide a direção com Tasso Dourado. Peréio é analisado nesse .doc por suas peripécias nada modelo. O talento GG que tinha e seu coração gigante imortalizaram sua picaresca maneira de ser.