Burhan Qurbani mergulha nas entranhas da exclusão de Berlim
Nova versão de romance de Alfred Döblin leva à Amazon Prime a vida periférica em solo alemão, apoiado na atuação soberba de Welket Bungué
Quando "No Beast, So Fierce" ("Kein Tier. So Wild.") atropelou a Berlinale 2025, em fevereiro, o nome de Burhan Qurbani, seu realizador, foi mencionado com respeito por todo o impacto que causou, cinco anos atrás, com o visceral "Berlin Alexanderplatz" (2020). O realizador renano de origem afegã fez da capital da Alemanha o cenário de um thriller queer sobre xenofobias que se arrastam desde o início do século XX, mas se acentuaram quando o crime organizado teve acesso a armas mais potentes. O mesmo assunto voltou à baila, este ano, com a releitura de "Ricardo III" que ele levou ao festival germânico, centrada nas quadrilhas de origem árabe.
Sua forma de retratar tiroteios deixaria Vin Diesel com inveja. A investigação sobre a brutalidade que se alastra com a segregação tomou forma com o cult que emplacou no ano zero da covid-19. Cult que ganha espaço agora, via streaming, na Prime Video da Amazon.
Ao sair do metrô em Berlin Alexanderplatz, na capital da Alemanha, um relógio montado ao ar livre, em 1969, indica a hora certa em 148 cidades de todo o planeta. Esse instrumento recebe os visitantes como um estandarte de cosmopolitismo, no qual todas as globalizações são possíveis. Por trás da precisão dos minutos e segundos, existe um atestado de que aquela região não cessa, incrustrada num país que é o motor econômico da Europa, mesmo na fase de crise que atravessa atualmente.
Essa aceleração já se fazia notar no romance que Bruno Alfred Döblin (1878-1957) publicou em 1929, ainda sob o trauma da I Guerra, com o nome daquela praça. No livro, Franz Biberkopf saia da prisão com planos de reinventar sua vida, mas percebe estar amarrado ao submundo depois que um amigo de índole duvidosa mata a garota de programa que era sua única fonte de afeto real. Ali, sonhos passam pelo ralador da ressaca moral e pela pobreza de uma pátria que começa a se ver assombrada pelo nazismo. Em 1931, o sucesso editorial de Döblin gerou uma adaptação para as telas dirigida por Phil Jutzi (1896-1946).
Em 1980, foi a vez de um pilar do Novo Cinema Alemão, Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), interessar-se por aquela prosa e transformá-la em uma minissérie que foi um marco da TV, com Günter Lamprecht no papel de Franz. Agora, chega à Amazon Prime uma nova adaptação, exuberante, pilotada por Burhan Qurbani, conhecido aqui por "Nós Somos Jovens. Nós Somos Fortes" (2014).
Sua montagem emula a precisão daquele tal relógio do início desta crítica: há uma universalidade em sua cartografia da exclusão. Influenciado pelo ethos de Fassbinder, mas capaz de criar um léxico próprio, Qurbani tenta uma leitura queer dos códigos de lealdade na sociedade contemporânea, trafegando para além dos rótulos que a intolerância sexual insiste em alimentar, sobretudo numa Europa atada aos grilhões do racismo. Döblin serve a ele como um instrumento para discutir o que teóricos brasileiros como o geógrafo e doutor em Sociologia da Educação Jailson de Souza (nas páginas de "A Favela Reinventa a Cidade") chamam de "estratégias de redes", ou seja, cooperações como meios de subsistência e de potencialização das populações periféricas. A evocação da obra de Jailson vem da relevância da Geografia como um saber humanista e do fato de que o Franz de Döblin aqui vira um imigrante de origem africana desterritorializado, "incluído" no território simbólico do Velho Mundo a partir de sua vivência de periferia.
Ovacionado em sua passagem pelo Festival de Berlim de 2020, o nevrálgico "Berlin Alexanderplatz" de Qurbani é um inventário das cicatrizes das vidas que gravitam pelas margens de uma Alemanha eurocêntrica, ainda quizilada pelo espectro do neonazismo. Sua projeção inaugural comoveu pela catártica atuação de Welket Bungué, astro egresso da Guiné-Bissau. Franz será vivido por ele, nas franjas trágicas de uma narrativa de educação sentimental pela pedra. A partir do desempenho dele, discute-se uma certa noção de imobilidade social no tráfego geográfico por um espaço urbano de violência. "É difícil se livrar do Diabo depois que a gente deixa ele entrar", comenta-se, em uma cena do filme de Qurbani, num indicativo do clima mefistofélico que cerca Franz. Aqui, esse imigrante d'África precisa apelar para o crime para alimentar o sonho de dignidade que acalenta. Avesso a toques invasivos em seu corpo, ele negocia a alma em sua jornada em prol de se afirmar não como um corpo estranho em um país estrangeiro, mas como parte dessa Europa ainda xenófoba que hostiliza seus passos. Numa sequência hipnótica, ele grita: "Eu tenho nome alemão!" para seus adversários, em um meio ambiente hostil de prostituição, lotado de chefões do crime e policiais intolerantes. É um filme de gângster e é um drama social, na jornada de um excluído para se reinventar.