Chegou julho. O semestre virou, a animação chinesa "Nezha: O Renascimento da Alma" segue nas cabeças no pódio dos longas-metragens de maior bilheteria de 2025 (com cerca de US$ 2 bilhões) e Hollywood se mantém, impávida no esforço de destrona-la, à força de produções como "Jurassic World: Recomeço", que estreia neste fim de semana.
Nos seis meses que se passaram, o cinema brasileiro viveu um céu de brigadeiro, com os 4 milhões de pagantes de "O Auto da Compadecida 2" e cerca de 1 milhão de tíquetes vendidos por "Chico Bento e a Goiabeira Maraviosa". Além (muito além) desses números, nosso audiovisual conquistou o Grande Prêmio do Júri da Berlinale com "O Último Azul", de Gabriel Mascaro, que vai abrir o Festival de Gramado no dia 15 de agosto; viu Walter Salles buscar nosso primeiro Oscar com o fenômeno "Ainda Estou Aqui", hoje no Globoplay; e "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho, arrebatou quatro prêmios em Cannes. Seu lançamento será no dia 6 de novembro. Dada a exuberância que arrebatou a Croisette, amplificada pelo desempenho de Wagner Moura na pele de um cientista da universidade pública perseguido por assassinos, no Brasil de 1977, é impossível o novo longa-metragem do realizador de "O Som Ao Redor" (2012) não figurar na lista dos melhores filmes de 2025, que o Correio da Manhã vai publicar em dezembro.
Tem muita água para rolar até lá, mas o vigor do thriller de Kleber é um colírio para olhos que já foram contemplados com muita coisa boa de janeiro a junho. A seleção a seguir resume o que se viu de mais vigoroso em nosso circuito nesse período. Confira, antes de fazer o seu panteão:
PECADORES ("Sinners"), de Ryan Coogler: O melhor filme do primeiro semestre, imbatível, é um exemplar do filão terror antirracista, o mesmo que nos deu "Corra!" (2017), com vampiros e a Ku Klux Klan a atazanar os juízos de dois empresários do ramo da Caninha da Roça que dão ao blues lugar de honra em seus negócios. Os negociantes em questão, irmãos gêmeos, têm o ator Michael B. Jordan, da franquia "Creed" (2015-2023), como intérpretes, numa atuação em (duplo) estado de graça. Quem dirige o astro nos papéis dos manos Moore, Elijah Smoke e Elias Stack, é o parceiro mais frequente dele, Coogler, o realizador de "Pantera Negra" (2018). Sua trama, decolonial, põe sugadores de sangue num bar de beira de estrada, no Mississippi pós I Guerra, na qual múltiplas ancestralidades egressas da África se manifestam. Seu faturamento beirou US$ 364 milhões.
MEU BOLO FAVORITO ("Keyke Mahboobe Man"), de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha: Ganhador do Prêmio da Crítica e do Prêmio do Júri na Berlinale de 2024, esta trama romântica outonal do Irã assume dois septuagenários, uma viúva e um taxista, como eixos para devassar os garrotes morais de sua pátria. Mahin (Lily Farhadpour), que perdeu o marido há cerca de três décadas, criou (bem) a filha e hoje vive sozinha, aos 70 anos. Na mesma idade, o motorista Faramarz (Esmaeel Mehrabi) também lida com a solidão em seu dia a dia. Durante uma noite, num encontro casual, eles vão provar do gostinho do benquerer. Sua codiretora, a atriz e cineasta Maryam Moghadam, é conhecida aqui por "O Perdão" (2021).
HOMEM COM H, de Esmir Filho: Com cerca de 640 mil ingressos vendidos, a cinebiografia do cantor Ney Matogrosso, hoje na Netflix, promove uma requintada autopsia em corpo vivo do companheirismo. Todas as músicas que fizeram do bardo um ícone de transgressão estão em cena, associadas a uma mesmerizante performance de corpo (e alma) do ator Jesuíta Barbosa. A fotografia de Azul Serra faz subir a temperatura e a pressão de cada quadro.
DREAMS (SEX LOVE), de Dag Johan Haugerud: Ganhador do Urso de Ouro da Berlinale deste ano, este drama sobre a experiência primeiro amor, vindo lá da Noruega, compõe uma trilogia com "Sex" e "Love", ambos de 2024. Seu enredo faz uma ode à literatura ao narrar angústias da aspirante a Clarice Lipector chamada Johanne (Ella Øverbye) no registro (em prosa) de suas fantasias sentimentais por uma mulher mais velha, que jamais a enxerga com desejo.
MANAS, de Marianna Brennand: Longa ganhador do Director's Award da Giornate degli Autori do Festival de Veneza e do Prêmio da Première Brasil, dado à sua atriz principal, Jamilli Correa. Sua trama testemunha o processo de maturidade a fórceps de Marcielle/Tielle (Jamilli), de 13 anos, num ambiente assombrado pela brutalidade contra as mulheres, nas águas da Ilha do Marajó (PA). Dira Paes é um dos destaques do elenco.
CAIAM AS ROSAS BRANCAS! ("¡Caigan Las Rosas Blancas!"), de Albertina Carri: O novo longa da diretora de "As Filhas do Fogo" (2018) tem o Brasil entre seus produtores. Na trama, Violeta (Carolina Alamino) fez um sucesso estrondoso com seu filme pornô lésbico amador, mas muito inventivo. Como resultado, ela foi contratada para escrever e dirigir uma versão um tanto mais convencional de seu cult. Suas opiniões sobre gênero e sobre cinema não se encaixam muito bem no ambiente mais profissional da produção audiovisual. Na vivência da inadequação, ela decide filmar com liberdade plena, numa viagem de carro, do sul de Buenos Aires a São Paulo.
ANORA, de Sean Baker: Atestado audiovisual da saúde criativa do cinema independente americano, o ganhador da Palma de Ouro de 2024 fez a festa na cerimônia do Oscar ao ganhar as estatuetas de Melhor Filme, Direção, Roteiro Original, Montagem e Atriz, dado a Mikey Madison. Em sua cartografia da vida noturna do Brooklyn, Baker acompanha as doideiras que se passam com a stripper Ani (Mikey) depois que ela se envolve com o filho mucho louco de um oligarca russo, o moleque Ivan (Mark Eydelshteyn), que conhece no clube onde faz strip-tease. Um momento de conto de fadas se desenha para a moça quando Ivan propõe que eles se casem em Las Vegas. Quando a notícia desse matrimônio chega à Rússia, despertando a fúria da mãe de Ivan, sua ilusão de uma vida de luxo e riqueza é ameaçada.
KASA BRANCA, de Luciano Vidigal: A vertente histórica do naturalismo, que vem lá da prosa literária, com "O Cortiço", é usada nesta crônica de alianças numa perspectiva solidária (e não catastrofista), a fim de ilustrar a vida de três jovens amigos num cotidiano de reeducação afetiva: Dé (Big Jaum), Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco, hilário). O trio vive os perrengues de uma cidade que isolou bairros e municípios distantes do mar, padecendo de um serviço de saúde deficitário na rede hospitalar pública. Apesar das várias dificuldades, a galera não esmorece. Retinas se encantam pela fotografia de Arthur Sherman, premiada no mesmo Festival do Rio em que Vidigal ganhou a láurea de Melhor Direção.
ERNEST COLE: ACHADOS E FERDIDOS ("Ernest Cole: Lost and Found"), de Raoul Peck: Sete anos depois da indicação ao Oscar por "Eu Não Sou Seu Negro", em 2017, o cineasta haitiano que virou um signo vivo da luta antirracista ganhou o troféu L'Oeil d'Or, a Palma da Não Ficção de Cannes, por esta investigação sobre fotografia. Discretos, mas implacáveis no registro do racismo, os cliques feitos pelo sul-africano Ernest Levi Tsoloane Cole (1940-1990) hoje são encarados como um documento das feridas geopolíticas deixadas pelo Apartheid. Sua obra foi maculada pelo desrespeito e caiu numa invisibilidade que hoje cega ao fim graças ao cinema.
SERRA DAS ALMAS, de Lírio Ferreira: O melhor filme do realizador de "Árido Movie" (2005) nos últimos 20 anos tem um quê do "Onde Os Fracos Não Têm Vez" que encheu os Irmãos Coen de Oscars em 2008. Como no cult americano dos manos Joel e Ethan, há uma fortuna roubada (no caso, em joias); há gente disposta a matar para ficar rica; e há um bicho solto tão perigoso quanto o Anton Chigurh de Javier Bardem: Gislano (Ravel Andrade). É ele quem junta um bando de amigos desajustados para roubar pedras preciosas, num golpe que descamba para uma comédia de erros com direito a uma vaca errante. Existe um político corrupto até o osso (papel que Bruno Garcia devora com uma fome de anteontem e com um brilho de "para sempre") que é atingido nesse rolê criminoso.