Cupido é moleque travesso

Por Rodrigo Fonseca

Especial para o Correio da Manhã

Encrencas amorosas envolvendo trocas de parceiros, términos repentinos, indecisões e até a visita de um fantasminha camarada tornam "Três Amigas" um deleite para as plateias brasileiras, com sessões em solo carioca. Uma trinca luminosa de estrelas - Camille Cottin, India Hair e Sara Forestier - garante a seu realizador, Emmanuel Mouret, a deixa para falar sobre sororidade, e também sobre as confusões do Cupido, numa produção indicada ao Leão de Ouro do Festival de Veneza.

Num enredo de ciranda afetiva, Joan (Hair) não está mais apaixonada por Victor (Vincent Macaigne) e sofre por se sentir desonesta com ele. Alice (Cottin) a tranquiliza: ela mesma não sente paixão por seu benquerer Eric (Grégoire Ludig), mas o relacionamento deles está indo maravilhosamente bem apesar disso. Ela não sabe que ele está tendo um caso com Rebecca (Forestier), sua amiga em comum. Essas histórias hão de virar de cabeça para baixo, sobretudo depois de uma trágica virada na rotina de Victor. O inusitado é a marca desse roteiro, assim como é o ingrediente central da obra de Mouret, que tem sido comparado a François Truffaut com sua estética.

"A moral nos prende a uma forma padronizada de querer e de expressar o sentimento, ainda que o cinema, em especial o francês, tenha aberto uma discussão histórica sobre os modos de gostar. Existem diretores cinéfilos que buscam reproduzir na tela aquilo que eles viram de melhor, e há cineastas como eu, que exploram a liberdade, que buscam a surpresa, que investigam os espaços a seu redor, ainda que o façam sob a luz do que viram antes nas telas", disse Mouret ao Correio no fórum Rendez-vous Avec Le Cinéma Français. "Existe um gênero, o 'filme de amor', que já passou por Woody Allen, por Truffaut, mas que ainda tem o que dizer".

Há uma década, Mouret tomou as salas do Brasil de assalto com o doloroso "Um Novo Dueto", ao debater impedimentos na paixão de personagens vividos por Virginie Ledoyen e Joey Starr. Antes já havia alcançado críticas cheias de elogio com "A Arte de Amara" (2011). Ambos se apoiam na tese de que amar funciona como um analgésico para as dores do mundo. Voltou a tratar disso no badalado "Amores Infieis" (2020). Sua narrativa mostra o encontro inesperado entre dois jovens que se apaixonam, mesmo ela já estando envolvida com um outro homem, de quem está grávida. Em 2021, o longa reinou nas indicações ao César, o Oscar à frances. Mouret brigou por esse troféu em várias frentes.

"Se existe um eixo comum nos meus filmes, e ele não é consciente, é a opção por pessoas que apesar de conhecer o medo da solidão, escolhe viver", disse o cineasta.

Esse temor mobiliza várias sequências de "Três Amigas" e impulsiona a trama de um de seus maiores sucessos: "Crônica de uma Relação Passageira". No sapatinho, sem fazer alarde, essa comédia romântica virou cult no âmbito dos afetos. Nasceu na mostra Cannes Première de 2022 e passou por aqui na Mostra de São Paulo do ano retrasado. Vendeu cerca de 320 mil ingressos em perímetro francês. O que ele arranca de Sandrine Kiberlain e do já citado Vincent Macaigne evoca Meg Ryan e Tom Hanks em longas como "Mensagem Pra Você" (1998).

Macaigne virou seu ator assinatura. Barbudinho, taquicárdico, sem prumo em suas incertezas e falador, ele encarna o obstetra Simón, a quem transforma num ímã de gargalhadas. A gente ri de nervoso com as inseguranças dele ao conjugar o verbo "eu quero". Na trama, ele, casado e pai, passa a arrastar um caminhão por Charlotte, mulher empoderada, mãe solteira e cheia de certezas interpretada pela campeã de bilheteria Kiberlain. Sua dramaturgia se estrutura sobre um acordo que os dois travam para transarem sem culpa: vai ser passageiro. Deveria. Mas, não é. E a delicadeza com que Mouret, à direção, explora o modo nada barthesiano com que o discurso amoroso se fragmenta é envolvente.

"Existem códigos da arte que levamos para o dia a dia de nossas relações. A maneira como o cinema afetou a realidade consciente que vivemos me faz pensar que não há apenas sexo envolvido na aproximação entre duas pessoas, há um sentimento de pertença, existe um carinho", defende o cineasta. "A maneira que eu tenho para expressar essa relação é pelo lirismo, que pode ser triste, sem perder seu vigor".

Em 2024, Mouret lançou um curta, "La Réputation", ainda inédito por aqui.